Minha entrada para a Ordem ocorreu num dos períodos mais complicados da história da instituição. Desde a queda de Acre, as críticas e adversidades aos Templários só faziam aumentar. E as freqüentes discordâncias entre as opiniões de de Molay e as de Filipe e do Papa em relação a uma nova cruzada não contribuíam muito para a reversão deste quadro.
Mas, problemas a parte, foi com incontido entusiasmo e sincera convicção que abracei os votos de pobreza, castidade e obediência no dia de minha consagração à Ordem do Templo. Para mim, tornar-me um templário significava muito mais do que usar no peito a cruz escarlate e empunhar uma espada contra os infiéis: era uma forma de dar à minha vida um propósito maior e dedicá-la a um objetivo que, na minha ingênua visão da época, correspondia aos mais elevados ideais da fé cristã.
Minha inocência quanto a isso durou bem pouco. Naquele mesmo ano, participei de minha primeira batalha...
Em fins de maio de 1300, fizemos uma incursão à costa síria. Nossa missão era apenas mapear as fortificações e as condições de defesa de Tortosa e das regiões vizinhas, retornando com informações que seriam úteis aos ataques que estávamos planejando para os meses seguintes.
O Santa Anna, navegando com velas negras para confundir-se com a escuridão, partiu de Famagosta ao cair da noite com 72 homens a bordo, entre os quais eu me incluía. O número era demasiado para o propósito de nossa viagem, mas sempre havia o risco de sermos surpreendidos por embarcações sarracenas e precisávamos estar preparados para surpresas.
Nem todos os embarcados eram Templários e boa parte da tripulação era formada por soldados cipriotas, a começar pelo capitão, que não pertencia à Ordem e que havia sido indicado pelos governantes da ilha por conhecer como a palma da mão os mares que iríamos singrar. Chamava-se Valantis e não me inspirava confiança. Seu nome de família, quase impronunciável, apagou-se faz tempo de minha memória. Tive antipatia por ele desde que o vi pela primeira vez, poucos dias antes de nossa partida. Na ocasião, muito me incomodou a idéia de estar sob suas ordens naquela que seria a minha primeira missão militar como membro da Ordem. Se eu pudesse prever o futuro, se soubesse o que iria acontecer, jamais teria subido a bordo daquele navio! Mas o futuro é um jovem que caminha ligeiro à nossa frente, sem nunca permitir que vejamos o seu rosto...
Por ser um dos poucos que sabia escrever e possuía conhecimentos de cartografia – adquiridos no tempo em que o Abade Hugues me encarregara da cópia de uma pilha de mapas antigos – fiquei responsável pelas anotações. Chegamos pelo norte, explorando um trecho de costa praticamente deserta até passarmos por Tortosa. Mesmo de longe, conseguimos localizar as defesas e posicioná-las no mapa com razoável precisão. Por último, circundamos Ruad (Arwad), examinando o que era possível da pequena ilha e de sua bem protegida enseada voltada para o litoral. Essa era a parte mais arriscada da missão, devido à proximidade que estávamos tanto da ilha quanto da terra firme. Mas, se por um acaso nos viram, pelo menos não nos importunaram. Tudo havia corrido como planejado e era hora de voltarmos a Chipre. Valantis, no entanto, contrariando minhas expectativas, ordenou que continuássemos margeando a costa em direção ao sul. Era quase manhã quando fundeamos nas proximidades de um povoado a meio caminho entre Tortosa e Tripoli, mais ou menos onde hoje se situa Al-Ramidiyah. O capitão convocou a todos no convés e, para minha surpresa e do meu grupo, anunciou que atacaríamos o povoado. Segundo ele, os habitantes daquele povoado eram colaboracionistas dos mamelucos egípcios e haviam recentemente interceptado e matado três enviados mongóis que tentavam chegar a Chipre trazendo mensagens de Ghazan, seu líder, endereçadas ao Mestre do Templo e ao monarca de Chipre.
Por alguns instantes, fiquei sem saber o que fazer e senti a mesma insegurança vinda dos demais templários. Mas estávamos sob o comando do cipriota, numa missão conjunta, e era nosso dever cumprir suas ordens.
Rapidamente e em silêncio, barcos começaram a ser baixados. Cinqüenta homens iriam à terra, praticamente todos soldados cipriotas, liderados pelo próprio Valantis. Dos templários, apenas eu e outros dois homens participariam da ação; os demais ficariam a bordo, cuidando do Santa Anna e preparando o navio para uma partida ligeira.
Mal pisamos na praia e Valantis ordenou o ataque. As instruções eram simples: saquear e matar, poupando algumas poucas pessoas para serem interrogadas sobre o conteúdo das mensagens mongóis.
Eu e meus dois companheiros templários não estávamos gostando nada daquilo, que não nos parecia um combate digno. Obediência, no entanto, era algo inquestionável para um membro da Ordem e, por mais que não concordássemos com o que estava por acontecer, iríamos fazer o que nos fosse ordenado.
O grupo avançou em silêncio, armas desembainhadas e prontas para o ofício da morte. Eu nunca havia participado de uma batalha e meu coração estava aos pulos. Até aquele momento, acho que não havia entendido como realmente seria. Não havia imaginado os gritos, os pedidos de clemência; não havia pensado, nem sequer por um instante, que massacraríamos sem piedade homens fracos e indefesos, juntamente com suas mulheres e crianças. Não; nada disso havia passado por minha cabeça. Até aquele momento, apenas avançávamos naquele final de noite, aproximando-nos do povoado adormecido. Eu caminhava atrás do grupo, apreensivo, ainda relutando em fazer parte daquilo. Mas não havia espaço para a opção... Então, percebendo nossa aproximação, um cachorro latiu. O latido foi seguido de um ruído surdo – um golpe de espada – e de um ganido estridente. E novamente o silêncio. E então os primeiros rumores, os primeiros sinais de alarde. E logo os primeiros gritos humanos. E o crepitar do fogo, começando a tomar conta das casas que não passavam de pobres choupanas.
Parei em meio a uma espécie de praça e olhei ao redor. Minha garganta fechou-se e meus olhos quiseram chorar. Soldados entravam nas cabanas, arrastavam para fora seus ocupantes, ainda atônitos, e os matavam sem qualquer hesitação, sem formular qualquer pergunta, sem demonstrar qualquer sentimento.
E eu estava ali, parado, passivamente compactuando com tudo aquilo. Mas não havia o que pudesse ser feito. Eu estava sozinho, com apenas 23 anos e tinha uma visão puramente romântica da guerra. Talvez aquilo que me parecia uma insanidade completa, fosse apenas a face terrível e feia da realidade me encarando pela primeira vez...
Mas eu não tomaria parte naquela carnificina covarde. Não eu; não o filho de Gilbert de Pierrefort; não um Cavaleiro do Templo de Salomão!
Eu não podia lutar contra os soldados cipriotas, nossos aliados, mas podia tentar salvar quantas almas pudesse. E podia, ao regressar à Chipre, denunciar aquele massacre inútil de gente indefesa e garantir que eventos como este não se repetissem.
Entrei numa cabana que parecia ainda intocada. Era pequena; não mais de três cômodos. Os dois primeiros estavam vazios. No terceiro, surpreendi uma mulher, desesperada, procurando esconder alguma coisa sob uma velha colcha. Ao ver-me, ajoelhou-se diante de mim, chorando e balbuciando num idioma incompreensível. Levei o dedo aos lábios, fazendo-lhe sinal para que não fizesse barulho e tentando explicar que não lhe faria mal. Foi então que percebi um movimento sob a colcha. Fiz menção de aproximar-me do monte de pano, mas a mulher agarrou-se às minhas pernas e começou a gritar e suplicar. Além de francês, eu falava latim, grego e catalão, mas não a língua daquela mulher, que me pareceu um dialeto árabe do qual reconheci uma ou duas palavras. Por instinto, gritei com ela em francês, pedindo que se calasse, dizendo que eu não a maltrataria. Neste momento, o monte de pano rolou para o lado e uma jovem mulher levantou-se do chão. Seu rosto, iluminado por um fio de luz da manhã que agora penetrava o quarto, me pareceu irreal, tamanha era a sua beleza! Devia ter alguns anos menos que eu, cabelos escuros e longos, olhos da cor do mel e a pele clara dourada pelo sol da Síria. Nunca, até aquele dia, eu havia visto uma mulher tão linda!
– Podemos confiar no que dizes? – perguntou-me num francês perfeito.
Consegui apenas balbuciar que sim, tão impressionado estava com a visão da jovem. Ela dirigiu-se à senhora no dialeto local, tranqüilizando-a. A mulher debulhou-se ainda mais em lágrimas e pôs-se a beijar meus pés. Enquanto me desvencilhava da pobre mulher, a menina me explicou que era filha daquela senhora com um cruzado franco que falecera alguns anos antes. Sua mãe a estava tentando proteger do destino que teria uma jovem mulher tomada como espólio naquela batalha.
Eu estava ainda pensando como poderia salvá-las quando ouvi vozes e passos apressados vindo do cômodo adjacente. O rosto da mulher mais velha retorceu-se de pavor e ela, movida pelo impulso materno, correu ao encontro dos soldados decidida a evitar que encontrassem sua filha.
Empurrei a garota para um canto no chão e joguei as colchas sobre ela. Corri para a sala para proteger a mãe, mas os soldados já a haviam matado e estavam arrastando para fora da casa o corpo sem vida. Um deles deve ter ficado curioso ao me ver sair de dentro da casa; separou-se do outro e correu para verificar o que havia no quarto de onde eu viera. Eu o acompanhei. Ele parou na porta e olhou o aposento que, a não ser por um par de tapetes desgastados e uma pilha de colchas velhas, lhe pareceu completamente vazio. Olhou-me com escárnio, virou-me as costas e saiu apressado.
Eu também saí. A ação parecia já haver acabado. Uma pilha de cadáveres tinha sido formada em meio à praça e os soldados cipriotas, a maior parte deles carregando alguma pilhagem, já se preparavam para retornar ao navio. Procurei meus dois companheiros de Ordem e os encontrei afastados do grupo, observando a movimentação com olhar crítico.
– Mensagens mongóis uma ova! – comentou Jean-Baptiste, o mais velho dos dois. – Não fizeram nenhuma pergunta sobre isso a ninguém! Eles só estavam interessados em matar e roubar!
– É uma vergonha para nós termos presenciado isso! – retrucou o outro em voz baixa. – Não creio que Henri de Lusignan, que é com certeza um bom cristão, tenha autorizado um massacre sem propósito como este.
– E você, Henri? – perguntou-me Jean-Baptiste. – Concorda conosco?
– D’accord! – respondi manisfestando minha indignação. – E pretendo solicitar uma reunião com de Molay tão logo cheguemos a Chipre para pô-lo a par do que aconteceu por aqui.
Voltamos ao navio com esta determinação e assim o fizemos. O Grão-Mestre não se mostrou muito preocupado com nosso relato, mas prometeu cobrar explicações do tal Valantis. Se ele realmente o fez, nunca nos deu qualquer retorno. Não o culpo; ele tinha coisas muito mais importantes com que se preocupar naquele momento. Pouco tempo depois destes fatos, numa operação que reuniu forças cipriotas, templárias e hospitalárias, atacamos Tortosa e chegamos a tomar conta de parte da cidade. Também tomamos Ruad, em parte graças às informações que coletamos. O plano era manter posições até a chegada do exército mongol enviado por Ghazan, o que não chegou a acontecer e, obviamente, tivemos que recuar.
Participei de várias batalhas nos dois anos que se seguiram e entendi que a guerra é sempre feia e cruel, mas que nós, Templários, sempre a lutamos com honra.
Em fins de 1302, após os muitos fracassos das campanhas cristãs no oriente, regressei à França pondo um fim à minha vida de guerreiro. De tudo o que vi no Outremer, nada ficou tão estampado em minha memória quanto o massacre ao povoado sírio, o qual mesmo hoje, séculos depois, ainda me custa recordar. Várias vezes indaguei-me o motivo pelo qual Deus me havia levado até aquela aldeia e por anos apeguei-me à idéia de que Ele me tinha colocado ali para que pelo menos uma vida fosse salva: a da bela mulher cujo nome eu desconhecia e cuja imagem povoava meus sonhos, noite após noite, desde então.