sábado, 8 de outubro de 2011

Minha história X – O Concílio do Cadáver



         No ano 891, sucedendo a Estevão V, sobe ao trono apostólico o papa Formoso.  Hábil político, talvez seu único erro estratégico tenha sido o de apoiar o rei da Alemanha, Arnolfo, em sua ambição de tornar-se Imperador do Sacro Império Romano, título também cobiçado pela casa dos Duques de Spoleto, poderosa e influente família italiana.
         Em fevereiro de 896, Arnolfo de Caríntia chega a Roma e recebe das mãos de Formoso, em cerimônia solene, a coroa imperial.  Arnolfo, no entanto, ostentaria por pouco tempo esta coroa.  Da mesma forma, o cetro de Pedro permaneceria com Formoso apenas por mais alguns meses, até que a morte o arrebatasse de suas mãos de forma inesperada.  Nada foi provado, mas suspeita-se que Formoso tenha morrido envenenado por ordem de Agiltrude, Duquesa de Spoleto.  A mesma duquesa teria então influenciado a eleição de Estevão VI para o cargo de pontífice, colocando assim no trono papal um franco opositor ao partido alemão e à facção de Formoso.  Na posição de Papa, Estevão abre contra o falecido Formoso um processo canônico, resgatando falhas cometidas pelo antigo pontífice durante sua trajetória eclesiástica.  Com a condenação de Formoso, Estevão pretendia declarar ilegítimo o papado de seu antigo adversário político, tornando conseqüentemente ilegítimas todas as suas promulgações, entre elas a coroação de Arnolfo.
         Para o julgamento, no entanto, realizado 9 meses após o falecimento de Formoso, a presença do réu era imprescindível.
         Assim, o corpo putrefato do antigo papa foi retirado de sua tumba, vestido e paramentado novamente como pontífice e colocado sobre o trono papal.  A medida que iam sendo lidas as acusações contra o cadáver, um jovem diácono, autorizado a falar em nome do morto, reconhecia a culpa que lhe era imputada.
         Ao final, após a condenação, Formoso foi considerado ilegítimo.  As vestes papais lhe foram então retiradas do corpo decomposto, a língua com a qual ditara em vida suas sentenças e os três dedos da mão direita que tantas vezes usara para abençoar ou selar seus atos lhe foram arrancados.  Numa última humilhação, seu corpo nú, podre e mutilado, foi arrastado pela cidade e finalmente atirado no Tevere.

         Este infame episódio, que passara para a história como o "Concílio do Cadáver", ameaçava agora repetir-se e isso tirava o sono de Clemente.  Enfermo e alquebrado, o pobre Papa andava de um lado para o outro em seus aposentos privados, sem notar o pequeno morcego que, junto ao teto, o observava de um dos cantos do quarto.
         A ameaça de Filipe de instaurar um processo contra o falecido Bonifácio VIII, acusando-o de bruxaria e de outros crimes contra a Fé e julgando-o de corpo presente, reeditando assim o hediondo Concílio do Cadáver, havia afetado Clemente de forma profunda.  Desde que assumira o papado, Clemente esforçara-se dia após dia para reconstruir as estremecidas relações entre a Igreja e a França, maior potência da cristandade ocidental, e para harmonizar as facções que disputavam o poder no seio da Santa Sé.  Nestes anos de árduo trabalho, havia conseguido estabelecer um equilíbrio frágil entre estas forças.  Mas o julgamento de Bonifácio reabriria velhas feridas políticas e fracionaria novamente a unidade da Igreja, destruindo todo o trabalho ao qual o Papa tanto se dedicara.
         Clemente entendia perfeitamente que as conseqüências da concretização da ameaça de Filipe iriam muito além da mera divisão do clero: Formoso havia sido julgado pela própria Igreja, enquanto Bonifácio seria processado e condenado pelo poder laico, abrindo um precedente inusitado e perigosíssimo.
         Clemente, abatido, ajoelhou-se diante do altar que havia no quarto.  De onde eu estava, ouvi a oração do alquebrado pontífice:
         – Senhor, não permitais que Vosso filho Benedito Caetani, que sob o nome de Bonifácio VIII ocupou o Trono de São Pedro, seja tão injustamente humilhado!  Não permitais, Senhor, que os ossos deste Vosso servo fiel sejam exumados e queimados em público como os de um adorador do inimigo da raça humana.
         Depois de uma prolongada pausa, interrompida por um profundo suspiro, Clemente concluiu sua oração.
         – Dai-me a clareza da Vossa Luz, meu Deus, para que eu tome a decisão correta, pois Filipe me fará escolher entre a Vossa Igreja e o Vosso Exército.

         Entendi perfeitamente o dilema em que o pontífice se encontrava.  Filipe pressionava-o com o processo contra Bonifácio, mas deixava à Clemente uma única saída: entregar a Ordem do Templo à sua própria sorte, retirando de sobre ela a proteção papal e utilizando-a como moeda de troca na terrível barganha proposta pelo rei.

         Abri minhas asas escuras e esvoacei janela afora ganhando a noite.  Aqueles que defendiam a minha Ordem precisavam tomar conhecimento do que eu ouvira.

sábado, 16 de julho de 2011

Minha história IX – A iniciação


         Agora eu era uma espécie de "consultor jurídico" da Ordem.  E o que era melhor, já que todos estavam presos: eu era um "consultor externo".
         Meu trabalho consistia em obter informações que nos permitissem antecipar os passos da equipe do rei.  Para isso, passava boa parte de minhas noites nas dependências do Louvre – ou de qualquer outro lugar que me fosse proibido ao acesso – pesquisando documentos ou ouvindo conversas que me pudessem interessar.
         Lendo e relendo os depoimentos contidos nos autos do processo, chamaram-me a atenção as narrativas de cerimônias de iniciação de diversos membros da Ordem.  E não pude deixar de recordar-me da minha...
        
         Após a sugestão de de Molay quanto ao meu ingresso para a Milícia do Templo e os procedimentos formais de avaliação e aprovação do meu nome pelo Conselho da Ordem, foi marcada a data de minha cerimônia de ingresso.
         Na noite de minha admissão, o Preceptor do Templo de Chipre abriu os trabalhos examinando por três vezes o documento que descrevia o protocolo que iríamos seguir, certificando-se de que o procedimento oficial seria o utilizado.  Concluída esta etapa, um veterano do Templo me expôs o regulamento da Ordem, salientando a simplicidade e a disciplina que dominariam os meus dias daquele momento em diante.  A Regra do Templo, redigida quase 200 anos antes por Bernard de Clairvaux, São Bernardo, com base na Regra de São Bento, continha as rígidas normas a serem seguidas por todos aqueles que aderissem à Ordem e, em breve, seria também a regra que regeria a minha vida.

         – Sabereis suportar o insuportável? – perguntou-me o Oficial do Rito ao final da leitura.
         – Senhor, com a ajuda de Deus suportarei qualquer coisa! – respondi de acordo com o protocolo e também com minha convicção.
         O que se passou depois não foi muito diferente do que acontece hoje com um recruta do BOPE: o Oficial, diante de todos os presentes, me pressionou de todas as formas no intuito de avaliar minha persistência e a firmeza de minha decisão e por muito pouco não mencionou a famosa frase "Pede pra sair!".
         Quando convenceu-se de meu merecimento, permitiu que eu proferisse meus votos de pobreza, castidade e obediência.  Feito isso, livrei-me de minhas roupas mundanas e vesti pela primeira vez o manto da Ordem.  O Preceptor, então, aproximou-se de mim e cingiu minha cintura com o cordão monástico, atando-o com um nó.  A partir daquele momento eu me tornava um templário!

         O trecho de cerimônia documentado nos Estatutos da Ordem terminara e boa parte da audiência, incluindo o Preceptor de Chipre, começava a se retirar.  O Oficial que conduzira o rito, no entanto, antes de sair, confiou-me a um irmão veterano, que me conduziu, acompanhado por outros três templários, a um aposento atrás da sacristia.
         Uma vez lá, o veterano, que se chamava Barthélemy de Quincy, pediu a um dos irmãos que nos acompanhava que fechasse a porta.
         Sem maiores explicações, virou-se para mim e disse em tom de comando: – Senhor, todas as promessas que fizeste são vazias de palavra.  Agora, devereis dar prova de vós com os fatos!
         Dizendo isso, mostrou-me um crucifixo e ordenou: – Ordeno-vos que renegues aquele que está pregado à esta cruz!  Fazei isto cuspindo sobre este símbolo da vossa fé!
         Apesar de surpreso, reagi de imediato.
         – Jamais renegarei o Cristo e jamais macularei a Santa Cruz!
         – Jurastes obedecer a qualquer comando de vossos superiores e agora, à primeira ordem, ousais mostrar-vos desobediente?
         Neste momento, os dois templários que estavam atrás de mim dominaram-me os braços enquanto o terceiro irmão encostava a lâmina de um punhal à minha garganta.
         – Estareis disposto a morrer por esta insurreição? – desafiou-me de Quincy.
         – Sim! – respondi novamente sem hesitar, mesmo esperando o pior. – Mantenho o que disse.  Jamais trairei minha Fé!  Jurei obediência à Milícia de Cristo, à Ordem que julguei ser a defensora da Igreja!  Devo obediência a meus superiores mas não há aqui entre vós quem seja superior ao Cristo, a quem obedeço em primeiro lugar.  Por isso, jamais farei o que me pedis!
         O veterano olhou-me nos olhos e sorriu.  As mãos que prendiam meus braços cederam e a fria lâmina afastou-se da minha garganta.
         – Muito bem, Pierrefort; agora sabemos do que sois feito!
         Dito isso, de Quincy deu-me o beijo monástico, selando assim minha entrada para a Ordem.

         Agora, ali, diante de todos aqueles relatos que compunham o processo, dei-me conta de que o que acontecera comigo também se passara com todos os outros irmãos.  Havia, no entanto, largas variações.
         Após o término da parte pública da cerimônia, todo postulante era submetido a um segundo ritual secreto, a portas fechadas, onde lhe era ordenado que renegasse o Cristo e que cuspisse sobre a cruz.  Esta era a parte comum a quase todos os depoimentos que li; a partir daí, os relatos divergiam bastante.  O que se desenrolava então dependeria da reação do postulante e do caráter e orientação daquele que oficiava o rito.  Havia casos em que o postulante hesitava e era então ameaçado ou submetido a punições, de brandas a severas, até que obedecesse.  Alguns, opunham-se tão firmemente às ordens recebidas que era o oficial quem acabava por ceder, pedindo-lhes que apenas fingissem obedecer às ordens ou mesmo dispensando-os de seu cumprimento sob a condição de que não mencionassem o fato a ninguém.  E havia também, é claro, aqueles que cediam de imediato, obedeciam e nada lhes chegava a acontecer.
         Assim, num certo sentido, algumas das acusações que pesavam contra a Ordem eram, portanto, verdadeiras.  A grande distorção era que estes fatos não implicavam necessariamente em heresia!  Sua conotação, a meu ver, era completamente outra: antecipava-se, com aquela cerimônia, as reações do postulante, fazendo-o revelar sua verdadeira natureza e, desta forma, suas reais aptidões.  Isso explicava porque alguns noviços eram imediatamente integrados ao front enquanto outros eram enviados diretamente aos centros administrativos da Ordem.
         Também acredito que o rito pretendesse antecipar a experiência de captura do postulante pelos sarracenos, uma vez que estes, era sabido, forçariam o templário a renegar sua fé e a prová-lo cuspindo sobre a cruz.  Ao vivê-la antecipadamente, o irmão estaria mais preparado para reagir de forma digna caso viesse a cair em mãos infiéis.
         O problema é que, depois do episódio de iniciação, não se falava mais sobre isso e cada um tirava suas conclusões baseadas em sua própria experiência.  E mais tarde, quando o então veterano era encarregado de administrar o rito a outro noviço, fazia-o unicamente a seu critério e sem qualquer orientação.  Li no processo histórias interessantes, como a de um postulante que demonstrou tamanho horror diante do que lhe ordenavam, que os presentes caíram na gargalhada e o dispensaram sem qualquer exigência.  Para estes templários – e daí por diante, também para o noviço que tomara parte daquilo – a cerimônia de iniciação não passava de um trote de escola!
         No meu caso, creio que tive muita sorte.  Barthélemy de Quincy era um homem de princípios nobres e um guerreiro de valor.  Lutei sob seu comando diversas vezes.  Por ironia do destino, não estive ao seu lado em sua última batalha, cerca de três anos depois de meu ingresso na Ordem, quando de Quincy lutou até a morte defendendo Ruad, que infelizmente caiu com ele.

         A verdade é que nem todo mundo compreendia as coisas direito e os abusos sem dúvida ocorriam.  E mesmo que o Papa – e que até o próprio Filipe – percebessem claramente a diferença entre alguns aspectos dos nossos ritos e o que pode ser verdadeiramente classificado como heresia, boa parte do mal já havia sido feito.  A Ordem do Templo já não era mais vista como a ponta aguçada da espada brilhante da cristandade.  E isso nem mesmo um vampiro poderia reverter.

sábado, 2 de julho de 2011

Minha história VIII – Em defesa da Ordem - Parte II


         No final do outono de 1309, sentia-me suficientemente preparado para enfrentar Filipe.  Era hora de colocar em prática o meu plano.  O primeiro passo seria conseguir a aprovação do Grão-Mestre.  Era necessário que ele aceitasse a minha ajuda e que fizesse a sua parte conclamando os irmãos a reagirem.
         De Molay estava encarcerado em uma das prisões do rei.  Não foi fácil achá-lo, o que só me foi possível devido ao acesso que tive aos registros de movimentação dos prisioneiros.  Sem isso, teria me tomado um tempo enorme encontrá-lo, já que os irmãos eram mantidos em um número muito grande de lugares que incluíam desde prisões comuns a calabouços de mosteiros e fortalezas e até mesmo casas pertencentes à própria Ordem.
         Nosso encontro, como não poderia deixar de ser, ocorreu numa madrugada de finais de outubro.  As noites já começavam a ficar mais frias e nem sempre era fácil dormir naquelas celas desprovidas de conforto.  O Grão-Mestre, no entanto, endurecido por uma vida de campanhas e frugalidade, parecia não se importar com as condições do tempo e dormia um sono profundo quando me propus a acordá-lo.
         – Meu senhor, acorde! – sussurrei próximo ao seu rosto.
         Ele abriu os olhos sem pressa, ajustando a vista já cansada à pouca claridade da cela.  Estava com cerca de 65 anos, 44 dos quais dedicados à Milícia do Templo, e me pareceu muito mais velho do que a figura do Grão-Mestre que eu guardava em minha memória.
         – O que...  Quem é você? – balbuciou o Grão-Mestre, ainda aturdido.
         – Pierrefort, senhor.  Do Templo de Chipre.  Recorda-se mim?
         – Pierrefort! – disse o velho esboçando um sorriso e colocando a mão em meu rosto. – Me disseram que você havia morrido!  Como você entrou aqui?
         – Não tenho tempo para explicar isso agora, senhor, mas estou aqui para ajudá-lo.  E para ajudar a Ordem.
         – Ah, meu bom rapaz, a única pessoa que pode ajudar a Ordem agora é o Papa Clemente e, sinceramente, não sei se ele conseguirá resistir à pressão feita pelo rei.
         – Não é hora de perder as esperanças, senhor.  É hora de reagir e, como nosso líder, esta reação deve partir do senhor!
         – Líder...  Não mereço mais liderar a Ordem.  Eu a traí!  Diante da mera ameaça do uso de tortura, confessei, em nome da Ordem, crimes que jamais cometi.  E escrevi aos irmãos estimulando-os a agirem como eu...  Não posso mais liderar ninguém.
         De Molay calou-se; a cabeça baixa evidenciando a imensa vergonha que sentia.
         – Senhor, não se culpe.  De início, todos pensamos que tudo se esclareceria em pouco tempo e que a Igreja não permitiria este abuso de Filipe. Ninguém poderia imaginar que ele estivesse disposto a ir tão longe!  Se isso lhe serve de alento, eu também confessei.  E também me arrependo disso.  Por isso mesmo quero me redimir.  Por isso pretendo lutar até o fim contra a tirania deste rei infame.  E, se estiver ao meu alcance e se Deus me ajudar, pretendo limpar o nome da Ordem para a qual entrei a convite seu; a Ordem que, através de seus exemplos, aprendi a amar.
         O Grão-Mestre ergueu a cabeça e sentou-se em seu catre.
         – Então... não se envergonha de mim? – disse o velho, olhando-me nos olhos pela primeira vez.
         – Senhor, eu daria a minha vida para segui-lo novamente sob a bandeira do Templo. – falei ajoelhando-me diante dele.
         De Molay ergueu-se, comovido.
         – Levante-se, Pierrefort. – disse ele tocando meu ombro. – Talvez você não saiba o bem que fez a este velho soldado, mas lhe sou muito grato por me ter dado esperanças.  O que quer que eu faça?
         – Quero que diga a verdade, senhor.  A Comissão Apostólica está prestes a se reunir.  Eles o convocarão para depor.  Retrate-se!  Diga que sua confissão foi obtida sob ameaça de tortura, como a de todos os outros irmãos.  Defenda a Ordem, senhor!
         O Grão-Mestre avaliou por alguns instantes o que eu lhe pedia.
         – Posso me retratar e posso estimular os demais templários a negarem seus testemunhos anteriores, mas não acredito que possa fazer mais do que isso.  Sou um homem de pouca instrução e não tenho como defender a Ordem contra os experientes juristas de Filipe.  Isso, meu caro, está além da minha capacidade.
         – Então declare isso diante da Comissão e diga que gostaria de ser assessorado por um comitê de irmãos de sua confiança.  Pietro di Bologna foi um dos nomes que me passaram pela cabeça.  Já tive algumas boas conversas com ele sobre Direito Canônico e ele é um advogado extremamente competente.
         – O italiano?  Bem lembrado! – falou sorrindo. – Parece que você já pensou em tudo... Mais alguma indicação?
         – Pensei em um grupo pequeno e seleto; irmãos realmente confiáveis e de integridade notoriamente inquestionável.  Eu incluiria nesta lista o irmão capelão Renaud de Provins e os cavaleiros Bertrán de Sartigues e Guillaume de Chambonnet.  Estes dois últimos, além de não terem confessado nada quando o Bispo de Clermont os interrogou, são cavaleiros de Auvergne, minha região natal, e nossas famílias mantêm relações de amizade há muito tempo.
         – Farei como me pede, Pierrefort.  E que Deus esteja conosco!
         – Ele está, meu senhor, e eu também estarei. Fui tido como morto e é melhor que todos pensem que isto realmente aconteceu.  Apenas o senhor e este pequeno grupo que mencionei saberão que ainda vivo.  Em liberdade, poderei ajudá-los.  Debaterei as questões legais com Pierre – me acostumei a chamá-lo pela versão francesa de seu nome – e trarei notícias de fora destas grades para municiá-los com informações atualizadas.  Tenho acesso inclusive a documentos que são restritos a de Nogaret e aos demais juristas de Filipe...
         Ao ouvir estas palavras, de Molay pareceu hesitar.
         – Como?  Como você consegue ter acesso a isso?  E como conseguiu entrar aqui?
         Pelo tom de sua voz, percebi que ele começava a desconfiar de minha lealdade e eu não poderia deixar que isso acontecesse.
         – Foi Deus quem quis que eu estivesse hoje em liberdade, senhor.  Disseram-lhe que morri?  Pois bem, eu realmente morri!  Mas Ele me trouxe de volta do mundo dos mortos!  E me deu poderes para ir e vir e para atravessar paredes!
         A expressão no rosto do Grão-Mestre me dizia que ele não acreditava em mim.
         – Senhor, pela sua Fé, peço que acredite em mim.  Mas, se minha palavra não é o bastante, se, como Tomé, precisa de provas, observe-me!
         Dizendo isso, caminhei em direção às grades, transformei-me em névoa por um instante e atravessei as barras, assumindo no instante seguinte a forma humana do lado de fora da cela.
         Olhei para trás.  Dentro da cela, de joelhos, como se tivesse acabado de presenciar um milagre, o Grão-Mestre rezava fervorosamente.


         Em 26 de novembro de 1309, Jacques de Molay apresentou-se à Comissão Apostólica e declarou estar disposto a defender a Ordem e invalidou seu testemunho anterior.  Dois dias depois, compareceu novamente à Comissão e adotou a postura que iria manter até o final do processo: já que apenas o Papa podia julgá-lo, falaria apenas com o Pontífice.

         As notícias correm e os ânimos mudam.
         Em 3 de fevereiro de 1310, 15 templários comparecem à Comissão para defender o Templo. Quando de Molay é trazido pela terceira vez diante da Comissão Apostólica, em 2 de março de 1310, outros 500 irmãos já se haviam manifestado em defesa da Ordem.  Um mês depois, este número já passava de 600.
         A reação do Templo havia finalmente começado!

sábado, 25 de junho de 2011

Minha história VII – Aprendendo novos truques


         Passei o verão de 1309 nos bosques próximos de Paris procurando desenvolver alguns dos poderes mencionados por minha amiga cigana.  Foi numa dessas noite quentes que consegui pela primeira vez me transformar em um animal.  No caso, numa coruja.  A transformação-clichê em morcego ocorreu dois dias depois.  Mas foi transformando-me em um lobo que vivi a experiência mais interessante.
         Eu andava pelo bosque numa dessas noites quando me deparei com um lobo de olhos cintilantes me fitando na escuridão.  Caminhei na direção do animal, que parecia me olhar com curiosidade.  Arisco, saiu de seu esconderijo e fugiu para dentro do bosque.  Transformei-me então em lobo, com a intenção de segui-lo.  Tratava-se, na verdade – como percebi assim que concluí minha transformação – de uma jovem loba.  Decidida a não permitir que eu a alcançasse e melhor conhecedora do terreno, corria à minha frente mantendo uma distância segura.  Sem que eu me desse conta, a astuta criatura fazia seu caminho por entre as árvores e arbustos conduzindo-me na direção da alcatéia.
         Não corremos por muito tempo.  Após atravessarmos uma área de folhagem mais alta e densa, cheguei a uma clareira onde mais de vinte pares de olhos me fitavam ameaçadoramente.  A jovem fêmea, ofegante, encolhia-se atrás de um grande macho cinzento, olhando-me apreensiva com a cabeça baixa, quase colada ao chão.
         O lobo cinzento parecia ser o macho-alfa e não demonstrou qualquer simpatia por mim.  Esticou o pescoço para frente, arqueando os ombros, e rosnou de forma pouco cortês.  Como lobo, compreendi claramente o protocolo utilizado e as suas intenções.  Ele aproximou-se lentamente, rosnando, com os dentes sempre à mostra, procurando flanquear-me.  Seu próximo passo, sem qualquer dúvida, seria lançar-se sobre mim.  Ele era maior do que eu e mais novo.  Mas não era dotado de inteligência humana, não havia combatido os sarracenos e, definitivamente, não era um templário.  Tampouco era um vampiro.
         Nossa luta foi rápida e terminou com minhas patas comprimindo seu corpo contra o chão e com minhas presas cravadas em seu pescoço.
         E então descobri um segredo que mudou o rumo de minha existência vampiresca.  Um vampiro mantém sua vitalidade ingerindo o sangue de seus semelhantes.  Sob a forma de lobo, o sangue de outro lobo era o sangue de meu semelhante.  Agora eu sabia como aplacar a sede hedionda sem precisar sacrificar vidas humanas.
         Bebi com avidez o fluido vital do derrotado líder da alcatéia enquanto os demais animais apenas observavam.  Não houve novos desafios e nem qualquer oposição à minha nova liderança.
        Quando soltei o pescoço inerte do macho morto e ergui a cabeça, meu focinho ensangüentado brilhou ao luar.  Num desejo incontido de expressão, manifestei-me através de um prolongado uivo de vitória.  E então vinte outros lobos juntaram-se a mim em coro, cantando para a lua.

sábado, 18 de junho de 2011

Minha história VI – Em defesa da Ordem – Parte I


        A condição de vampiro nos outorga enormes poderes.  No meu caso, isso não aconteceu de imediato, mas progressivamente ao longo de meu primeiro ano como morto-vivo.  De início, percebi apenas os aspectos terríveis da minha metamorfose – como a intolerância à luz do sol e a implacável sede de sangue (a sede hedionda, como eu costumava chamar).  Aos poucos, porém, coisas interessantes começaram a manifestar-se em mim.  Eram poderes e habilidades que eu jamais sonhara em possuir.
         Primeiro, veio a força: uma força física sobre-humana acompanhada de uma sensação irrestrita de vigor e de um aguçamento impressionante dos sentidos.  Depois, vieram poderes ainda mais surpreendentes...
        
∞ Ж ∞

         Quando abri meus olhos pela primeira vez como vampiro, após ter permanecido morto por três noites, minha única preocupação era saber o que havia acontecido com meus irmãos e com a Ordem.  Eu estivera preso por mais de um ano e precisava entender o que havia ocorrido do lado de fora das masmorras durante esse período.  Para me informar, procurei as tabernas, o que me parecia mais fácil do que procurar meus amigos, já que eu ainda não lidava muito bem com minha nova condição.
         Foi um começo acertado.  Nas tabernas, compartilhando as noites e as jarras de vinho com bêbados e prostitutas, pode-se descobrir muitas coisas.  Descobri, por exemplo, tudo o que se dizia a respeito da queda-de-braço que era disputada por Filipe e Clemente e da trama urdida por nosso rei para apoderar-se dos recursos da Ordem.  Entendi também que o punho do Papa já se havia dobrado e que, em breve, seu braço tocaria a mesa...
         Mas eu estava livre – pelo menos durante a noite – e poderia tentar ajudar de alguma forma.  E a única coisa que me passava pela cabeça era usar meus conhecimentos de Direito para auxiliar na defesa da Ordem.  Mas, para isso, eu precisaria ter acesso ao Processo.
         Os documentos oficiais estariam evidentemente sob a guarda da Igreja e, portanto, fora de Paris.  No entanto, Filipe e seus conselheiros deveriam manter com certeza uma cópia ao alcance da mão.  E o lugar onde esta cópia estaria não poderia ser outro senão o Louvre, o palácio de Filipe e sede administrativa do reino.  Mas entrar lá – e depois sair – me parecia uma tarefa impossível!  Protegido pela guarda pessoal do Rei, o Louvre seria ainda mais inexpugnável que a masmorra em que eu estivera preso... "Mas como ela havia conseguido?" – pensei recordando-me de Nadine, a garota que entrara em minha cela na prisão e que havia me transformado em vampiro. – "Agora que eu sou como ela, talvez possa fazer o mesmo!"
         Eu precisava saber um pouco mais a respeito de vampiros.  Estava na hora de voltar às tabernas.
         Com uma cigana que conheci na "A Cabra Manca", aprendi que vampiros podem transformar-se em névoa.  Podem também assumir a forma de animais ou simplesmente comandá-los através da imposição da vontade.  Vampiros poderosos podem, em alguma medida, controlar o tempo e os elementos.  Também lhes é possível influenciar os sonhos humanos, estabelecer contato direto com as mentes dos homens e até mesmo impor sua vontade aos mais fracos.

         Se ela estivesse certa – e ela me garantia que estava – mais cedo ou mais tarde eu desenvolveria tais habilidades.
         Como eu não podia deixar este processo ao acaso, decidi praticar.  O primeiro sucesso que obtive foi na transformação em névoa.  Demorei um pouco para pegar o jeito mas, ao final de algumas semanas, já "me esfumaçava" com naturalidade.  E isso vinha bem a calhar para quem tencionava entrar no Louvre sem ser notado.
         Durante os meses de março e abril de 1309, noite após noite, eu penetrava como a brisa pelas frestas das portas ou pelas aberturas das janelas e estudava o vasto acervo de documentos que encontrei no Louvre.  Não havia só os documentos oficiais; havia também diversos outros que não favoreciam Filipe e que foram habilmente suprimidos por de Nogaret e de Plaisians dos autos do processo.  Empenhei-me em conhecer de cor a maior parte dos documentos, já que, movimentando-me como névoa, não me era possível levar comigo nenhum deles.  Com diligência e perseverança, e valendo-me do fato de sempre ter sido um bom estudante, consegui memorizar a quase totalidade da informação que havia à minha disposição.
         Agora, era preciso tempo para digerir aquilo tudo e traçar um plano.
         E tempo era o que não me faltava...

sábado, 11 de junho de 2011

Minha história V – Filipe X Clemente


         Novamente pequei, perdendo-me nos detalhes em meu último post, mas já não me importo mais com isso.  Como diz o ditado, "a um burro velho não se ensinam novos truques".  O mesmo se aplica ao velho templário que escreve estas palavras.  E o leitor deve também considerar que, além dos meus 734 anos, sou também advogado, o que me torna ainda mais prolixo e ainda mais incorrigível.
         Por isso, não lutarei novamente contra minha natureza e escreverei o que bem entender neste meu blog.  Espero que me perdoe, compreensivo leitor, por este desabafo, e peço que tenha um pouco de paciência com este velho cuja memória tem a extensão dos séculos e para quem o tempo nada significa.  Que sua paciência e persistência na leitura deste texto sejam, no mínimo, recompensadas com uma boa e verdadeira história!
         Dito isso, posso novamente e agora sem culpa, perder-me outra vez nos detalhes...
        

         As instruções de Filipe, logo após as prisões de 13 de outubro, indicam que deva ser usada a tortura, "se necessário".  A partir das confissões obtidas com estes métodos condenáveis, as acusações tomam corpo.  Quando o papado toma ao seu encargo as investigações, o processo já conta com 127 artigos de acusação.  Fala-se de renúncia ao Cristo, de considerá-lo um falso profeta; de cuspirem, pisarem e urinarem sobre a cruz durante as cerimônias de admissão na Ordem; de adorarem ídolos uma cabeça de três rostos, o Baphomet, um gato; de não crerem nos sacramentos; de entregarem-se a práticas obscenas e à homossexualidade; de terem por objetivo maior contribuir para o enriquecimento da Ordem, não importando através de que meios; de reunirem-se à noite para a prática de rituais secretos de bruxaria...

         Com as confissões obtidas sob tortura da quase totalidade dos templários aprisionados, Filipe e de Nogaret antecipam um êxito fácil para seu plano.  Algumas destas confissões tinham claramente um peso maior do que outras.  Como as dos altos dignitários, por exemplo.
         O primeiro a confessar foi Godofredo de Charney, Preceptor da Normandia, que o fez em 21 de outubro de 1307.  As declarações de Hugues de Pairaud, Visitador da Ordem e que, por força de seu cargo presenciara centenas de cerimônias de admissão, também representaram um importante golpe contra a credibilidade do Templo.  Mas o depoimento do próprio Grão Mestre, Jacques de Molay, em 24 de outubro, confirmando as palavras de Charney e de Pairaud, e repetindo sua confissão no dia seguinte diante dos mestres da Universidade de Paris, foi sem dúvida um marco na opinião pública da época.

         O que de fato acontecia é que a Ordem não estava sujeita ao poder laico e os templários acreditavam que tudo seria solucionado pela intervenção da Igreja.  Por isso, cedem tão facilmente.  Não são os Templários o exército pessoal do Pontífice?  Porque então negar e sofrer sob tortura se logo o Papa porá um fim àquele absurdo?
         Com essa convicção, da qual compartilha de Molay, os templários confessam.  Alguns hesitam, negam a princípio, mas cedem e retratam-se mais adiante.  Muito poucos mantêm-se firmes e rechaçam até o fim as acusações.
         É importante notar que estas acusações feitas contra os Templários não são novas: são as mesmas utilizadas por de Nogaret contra o Bispo de Pamiers, Bernard Saisset, em 1301, e contra o papa Bonifácio VIII, em 1302 e 1303, e fazem parte do conhecido arsenal anti-herético comum da época.

         Mas a verdade é que, mesmo com todas as "provas" levantadas, as coisas não saem tão fáceis para Filipe.  Com a bula Pastoralis praeeminentiae, Clemente recupera o controle do processo, para preocupação do rei.  Filipe então insiste, enviando petições ao Papa solicitando a transferência da guarda dos templários da Igreja para o poder leigo, mas não obtém êxito.  Também não obtém êxito em impedir que, em dezembro de 1307, Jaques de Molay e os dignitários do Templo, diante dos cardeais enviados por Clemente, revoguem suas confissões, alegando terem sido coagidos pela tortura.  Clemente, agora, sabe o que fazer e, em fevereiro de 1308, dispensa os serviços de Guillaume de Paris e de Nicolás de Enmezat, os Inquisidores encarregados das investigações.  De agora em diante, não haverá mais torturas.
         Filipe, então, muda de estratégia: reduz as pressões sobre o papa e amplia seu trabalho sobre a opinião pública.  Estratégia semelhante havia funcionado bastante bem contra Bonifácio VIII.  Porque não utilizá-la novamente?  Dirige-se aos doutores da Universidade de Paris, formulando questões sobre a legitimidade das acusações.  As respostas só são conhecidas em 25 de março e não favorecem Filipe.  Defendem que o Templo é uma ordem eclesiástica e que, como tal, deve ser julgada pela Igreja.  No entanto, concordam que, mediante suspeitas de heresia, Filipe tenha agido corretamente dando início ao processo.  Isso é muito pouco, mas já é um começo.
         Filipe age.  Ordena a distribuição anônima de folhetos difamando Clemente e conclama a todos - clero, nobreza e gentio - a defenderem os princípios morais e religiosos apoiando a condenação de uma ordem de hereges.  De Nogaret realiza em Tours um concílio de Estados do reino, convocando representantes de todas as comunidades francesas.  Durante os meses de junho e julho, Filipe, de Nogaret e de Plaisians voltam a exercer pressão sobre Clemente, apresentando novamente todas as provas contra a Ordem e exigindo sua dissolução imediata.  Para aumentar a pressão, os conselheiros do rei apresentam ao Papa um grupo de 72 templários, bem instruídos e preparados, que testemunham contra a Ordem.
         Com tanta pressão, Clemente cede.  Permite a volta dos Inquisidores e, através da bula Faciens misericordiam, autoriza o julgamento dos templários como pessoas comuns pelos concílios provinciais.  Nomeia também uma comissão apostólica formada por oito membros para realizar investigações detalhadas sobre a Ordem.  Um conselho geral, convocado pela bula Regnans in coelis, e que deveria reunir-se primeiramente em Vienne em 1310, julgaria e se pronunciaria sobre a eventual suspensão da Ordem.  Por último, Clemente se conserva o direito de julgar pessoalmente o Grão Mestre e os demais dignitários do Templo.  Os prisioneiros continuarão sob a guarda de Igreja, mas os bens da Ordem serão postos sob a guarda do reino.

         Estamos no início de 1309 e a vitória de Filipe parece ser total.
         Mas o rei de mármore não usufruiria dessa vitória assim tão facilmente...

sábado, 4 de junho de 2011

MInha história IV - O último Templário livre



         Não quero transformar este blog em uma aula de história medieval, senão apenas contar a minha história pessoal que, no entanto, se confunde com aquela.  E é preciso que eu esclareça alguns fatos sobre a perseguição e sobre o processo que foi instaurado contra a Ordem do Templo para que você, caro leitor, possa entender com clareza as motivações por trás destes acontecimentos.
        
         Calúnias e rumores sobre a Ordem correm à boca pequena desde 1305.  São relatos sobre heresia, idolatria e sodomia.  Nascem em Agen e têm origem em Esquieu de Floyran, originário de Béziers e Prior de Montfalcon.
         Em 1305, Esquieu comunica estes rumores ao Rei de Aragón, Jaime II, que não lhe dá atenção.  Esquieu relata então suas suspeitas ao Rei de França.  Filipe vê nelas uma oportunidade e seus conselheiros, Guillaume de Nogaret e Guillaume de Plaisians, começam a juntar material contra o Templo.  Comunicam ao Papa as suspeitas, mas Clemente V não crê nelas.  Mesmo assim, Clemente não consegue deixar de questionar Filipe nas ocasiões em que o encontra, primeiramente em Lyon, em 1305, e novamente em Poitiers, na primavera de 1307.  Em nenhum destes encontros, no entanto, Filipe comenta sua intenção de deter os templários.  De Nogaret continua reunindo diligentemente material contra o Templo: coleta testemunhos de templários expulsos da Ordem por suas faltas; introduz espiões dentro Templo; acentua a pressão sobre o Papa (Clemente sabe que o episódio de Anagni – o rapto de Bonifácio VIII e seu falecimento pouco depois – podem se repetir tendo ele próprio como protagonista).
         Jacques de Molay, mantido a par de tudo o que acontece por templários próximos ao Papa, decide então antecipar-se e solicita a Clemente a abertura de uma investigação sobre as calúnias que estão sendo levantadas contra a Ordem.  Em 24 de agosto de 1307, o Papa informa a Filipe haver ordenado uma investigação a respeito.

         Incomodado com a possibilidade de perder o controle da situação, Filipe decide agir.  Em 14 de setembro de 1307, dia da festa da Exaltação da Santa Cruz, encaminha cartas seladas, com instruções para serem abertas apenas no dia 13 de outubro, a todos os cantos da França.  O texto é habilmente preparado de forma a demonstrar a motivação piedosa de Filipe:
         "Uma coisa amarga, uma coisa deplorável, uma coisa seguramente horrível de se pensar [...].  Uma coisa absolutamente inumana, muito mais, estranha a toda a humanidade, há chegado a nossos ouvidos graças ao informe de várias pessoas dignas de crédito. [...]
         Os irmãos da Ordem da Milícia do Templo, ocultando o lobo sob a aparência de cordeiro e insultando miseravelmente a religião de nossa fé por baixo do hábito da Ordem, são acusados de renegar Cristo, de cuspir sobre a cruz, de entregar-se a gestos obscenos durante a admissão na Ordem e de obrigar-se, pelo voto de sua profissão e sem temor em ofender a lei humana, a entregar-se uns aos outros, sem negar-se, tão prontamente quanto lhes for solicitado. [...]
         Visto que a verdade não pode ser revelada plenamente de outro modo, que uma suspeita veemente se há estendido a todos e que, se há algum inocente, importa que seja provado como é o ouro no crisol e purgado pelo exame de juízo que se impõe [...], decidimos que todos os membros da dita Ordem de nosso reino sejam detidos, sem exceção alguma, mantidos prisioneiros e colocados ao juízo da Igreja, e que todos os seus bens, móveis e imóveis, sejam confiscados, postos sob nossa guarda e fielmente conservados. [...]"

         Na manhã de 13 de outubro, a ação começa.  Em Paris, 138 templários são detidos.  Em toda a França, o número soma 546.  Muito poucos escapam: contagens oficiais mencionam apenas 12, entre os quais Gerard de Villers, Preceptor da França, um dos altos dignitários da Ordem. 

         Fora da França, no entanto, a iniciativa de Filipe não é bem recebida.  Em 16 de outubro, o Rei apressa-se a escrever a seus pares na Europa, exortando-os a agirem como ele.  No dia 30, Eduardo II de Inglaterra responde-lhe que não crê em uma só palavra das acusações que são feitas contra o Templo.  Jaime II, em sua resposta, defende veementemente a Ordem.  O Papa, que encontra-se em Poitiers, está indignado: "Vossa conduta impulsiva é um insulto contra Nós e contra a Igreja Romana.", escreve ao Rei em 27 de outubro.
         Filipe não perde tempo.  Ordena os interrogatórios e, ao final de outubro, obtém as primeiras confissões.

         Clemente é um papa débil e enfermo, levado ao pontificado pelas mãos de Filipe, mas sabe que não pode deixar que sua autoridade seja escarnecida e precisa retomar as rédeas em relação às questões que se levantam contra o Templo.  Em 22 de novembro, através da bula Pastoralis praeeminentiae, ordena a detenção dos templários em toda a cristandade e a colocação dos bens da Ordem sob a tutela da Igreja.
         Eduardo II recebe a bula em 14 de dezembro e se conforma com a decisão papal.  Em 10 de janeiro de 1308, os templários ingleses são presos em Londres, York e Lincoln.  A ordem de prisão chega em 25 de janeiro à Justiça Maior da Irlanda, que a executa em 3 de fevereiro.  No total, 135 templários são detidos nas Ilhas Britânicas.
         Nos Estados Ibéricos, as reações são distintas.  O Rei de Navarra é Louis, filho mais velho de Filipe IV, e o obedece prontamente: em 23 de outubro, os templários do reino são encarcerados em Pamplona.  Na operação, 3 templários de Aragón são aprisionados juntamente com os de Navarra, mas são libertados em seguida, numa reação aos protestos de Jaime II.  Mas Jaime não quer libertá-los: quer prendê-los ele mesmo, já que pretende evitar a qualquer custo que os bens da Ordem caiam em mãos da Igreja ou sejam transferidos para os Hospitalários e ordena as prisões em Aragón e em Valencia.
         Em Valência, os templários são presos em 1 de dezembro.  Exmen de Lenda, Mestre da Província de Aragón é capturado.  Outros, no entanto, resistem: Raimundo Sa Guardia, Preceptor de Mas Deu, em Rosellón, lidera um grupo de irmãos que se aquartelam em seus castelos de Miravet, Monzón e Ascó, entre outros.  Entre dezembro de 1307 e agosto de 1308, Raimundo mantém correspondência com Jaime, defendendo a Ordem, relembrando ao rei os serviços prestados pelo Templo à causa da Reconquista.  A partir de fevereiro, Jaime sitia os castelos, que caem um a um, o último deles capitulando em julho de 1309.
         Em Mallorca, apesar de contrariado, o rei acata a bula papal e procede à detenção dos templários.
         Em Castilla e Portugal, os soberanos defendem a Ordem e nada fazem até a publicação de uma nova bula, Faciens misericordiam, em agosto de 1308, quando finalmente efetuam as prisões.
         Em outros lugares, as atitudes das autoridades dependem dos laços e das relações que mantêm com a coroa francesa mas, mais cedo ou mais tarde, as prisões acabam acontecendo e, em finais de 1308, todos os templários da cristandade ou estão presos, ou tornaram-se fugitivos.

         Um deles, no entanto, goza de uma situação especial: é dado como morto e na verdade o está mas caminha entre os vivos à noite com total liberdade de ação.  Este templário sou eu!

sábado, 14 de maio de 2011

Minha história III – De como me tornei um Vampiro – Parte II


         Não vou me alongar demais, pois acho que me perdi nos detalhes em meu último post.  Espero que me perdoem.  Afinal, alguém como eu, nascido em 1276, não pode ser classificado como um “nativo digital”, não é mesmo?
         Mas voltemos à minha história...

         Não foi fácil me acostumar à Paris, quando do meu retorno à França.  Ou a cidade havia mudado muito, ou eu mudara.  E creio que a maior mudança tenha sido mesmo a minha.  A vida no Outremer era completamente diferente da vida burocrática de uma grande cidade, que eu já não mais conseguia suportar.  Apesar disso, empenhava-me por realizar minhas atribuições junto à Ordem da melhor forma possível, auxiliando na administração dos negócios do Templo de Paris e atuando como conselheiro da Ordem para assuntos legais.

         Eu poderia aqui me deter nos muitos fatos que ocorreram neste período, mas prometi que não me estenderia além do necessário.  Pulemos então para os acontecimentos que tiveram lugar em fins de 1307.
        
         Como muitos de vocês devem saber, foi neste ano, na fatídica madrugada de 13 de outubro, que ocorreu a prisão dos templários em território francês, numa operação muito bem engendrada pelo ambicioso Rei Filipe de Valois.  Juntamente com centenas de outros templários, fui preso, acusado de crimes hediondos e torturado.
         Naquela época, eu pensava que era tudo uma questão de tempo e que, mais cedo o mais tarde, a verdade prevaleceria.  Mal sabia eu a extensão da perfídia de Filipe e a abrangência da trama que se armara fora das masmorras em que me encontrava aprisionado.
         Filipe e seu conselheiro, Guillaume de Nogaret, haviam pensado em cada detalhe.  A operação de nossa captura, por exemplo, fora planejada com antecedência: cartas lacradas, acompanhadas de instruções para serem abertas apenas na noite de 12 de outubro, tinham sido enviadas a todos os cantos da França quase um mês antes.  As acusações haviam sido forjadas ainda com mais antecedência, baseadas nos depoimentos de dois homens – Noffo Dei, um florentino que se dizia templário, mas que tivera apenas um envolvimento comercial com a Ordem, e Esquieu de Floryan, um antigo Prior de Montfalcon que trocara falsos testemunhos por favores pessoais.
         Entre meados de outubro e finais de novembro daquele ano, 138 templários foram torturados pelos algozes de Filipe e pelo Inquisidor de Paris, um dominicano chamado Guillaume Imbert e que era confessor de Filipe.  Mas nem todos se entregaram à confissão: 2 cavaleiros morreram naqueles dias em conseqüência dos interrogatórios e outros 3, mesmo padecendo os piores tormentos, recusaram-se a mentir sua culpa.  Gostaria de estar entre eles, em qualquer um destes dois grupos, mas, apesar de minha vergonha em admiti-lo, fui um dos muitos que cederam ao conforto piedoso de uma falsa confissão.
         Atemorizado, humilhado, sentindo-me um traidor, fui atirado à cela de um calabouço fétido, juntamente com um pequeno grupo de irmãos.  Vez por outra, guardas entravam e levavam algum de nós.  Às vezes, este irmão retornava; outras vezes, não.  Com isso, minha cela foi ficando vazia, até restar apenas eu.  “Eu, os ratos e Deus”, eu costumava pensar.
         Uma vez ao dia, um prato de metal com alguma comida era enfiado por baixo da porta.  Era geralmente algo de aparência repugnante e com gosto azedo, e não foram raras as vezes em que as larvas pareciam ter chegado primeiro à minha refeição.  Mas, quando o carcereiro esquecia-se de mim por mais de três dias, o que também não era raro, era com humilhante sensação de agradecimento que eu recebia o alimento que ele me trazia.

         E assim correram meus dias, acorrentado à parede de uma cela sem janelas, sentindo o passar das estações pela temperatura do ar pestilento que impregnava o ambiente.  E as estações passavam rápido.  Lembro de ter sentido muito frio algum tempo depois de ser preso.  Agora, o frio penetrante estava de volta, me fazendo concluir que um novo inverno ocorria lá fora.  Devíamos estar em fins de 1308.
         As ausências do carcereiro passaram a ser a regra.  Nas ocasiões em que ele aparecia, deixava um balde com água e um pedaço de pão, que deveriam durar até sua próxima e incerta visita.
         Meu corpo era só pele e ossos quando os sentidos começaram a trair-me.  Eu mal tinha forças para arrastar-me até a água ou para mastigar o pão empedernido, e já não conseguia mais pensar com clareza.
         Em uma noite especialmente gélida, julguei ouvir sinos tocando, muitos sinos.  Eles me trouxeram de um sono profundo, do qual talvez eu não quisesse voltar, e me fizeram abrir os olhos.
         Minha visão estava turva e tardou a acomodar-se à penumbra da cela, mas, quando o fez, julguei divisar uma figura diante de mim.  Forcei a vista e então a vi com clareza.  Estava parada, altiva, olhando-me com curiosidade. “Então vieste, finalmente!  Irei contigo de bom grado, amiga Morte!”.  Não pronunciei as palavras; apenas as imaginei em minha mente.  E da mesma forma, sem que qualquer som fosse emitido, ela me respondeu: “Não sou a Morte; não para ti.  Olha-me com atenção.  Será possível que não te recordes de mim?”.
         Não sei de onde retirei forças, mas consegui ficar de pé e encará-la.  E só então pude perceber sua assombrosa beleza!  Os cabelos escuros, presos num coque sobre a cabeça elegante; os olhos grandes e amendoados, da cor do mel; a boca perfeita como uma fruta madura...  E então a reconheci!
         – Você?  Como é possível? – balbuciei incrédulo.
         – Sim, meu salvador; eu mesma. – respondeu-me desta vez de forma audível. – Vim para retribuir o que fizeste por mim.
         Desde aquela madrugada, quando a salvei das garras da desonra e da morte na aldeia síria atacada por nós, sua lembrança não me saíra do pensamento.  Mas haviam se passado oito anos!  Eu estaria agora com 32; como poderia ela continuar aparentando a mesma idade, sem qualquer sinal da passagem do tempo?
         A resposta veio novamente como um sussurro dentro de minha cabeça: “Queres saber o que se passou comigo, cavaleiro?”.
         Respondi que sim.
         “Pois contarei.”
         “Depois que os soldados se foram, abandonei meu esconderijo e corri para a rua.  Não havia outros sobreviventes.  Procurei minha mãe e a retirei de um monte de corpos.  Abraçada a ela, chorei até o sol estar alto.  Decidi enterrá-la, e a todos, tantos quanto pudesse, mas, até a noite, havia conseguido sepultar apenas ela e algumas poucas pessoas.  Estava exausta, com as mãos machucadas e o coração despedaçado...
         “Foi quando ele chegou, atraído pelo cheiro de sangue que emanava da aldeia...  Um nosferatu...  Sabes do que estou falando?  Não?  Pois saberás em breve, meu piedoso salvador.”
         Com estas palavras, livrou-se da capa que cobria seu corpo e aproximou-se de mim, nua.
         Eu já a havia imaginado assim por diversas vezes, mas sempre reprimira minha imaginação, impedindo que tais pensamentos impuros me dominassem.  Mas agora, eu estava fraco demais para lutar.
         Contemplei seu corpo perfeito, as curvas harmoniosas de seus quadris, a beleza estonteante de seus seios firmes...

         Ela encostou-se a mim.  Sua pele era fria como uma noite de inverno.  Beijou-me a boca, com delicadeza.
         – Sabes que dia é hoje? – sussurrou ao meu ouvido. – É Natal!  Não ouviste os sinos?  E estou aqui para dar-te um presente.  Um dia, me deste a vida, mas me tiraste tudo o mais pelo que vale viver.  Agora, meu bom cavaleiro, eu te retribuo!

         Seus lábios tocaram meu pescoço.  Uma dor aguda surpreendeu-me e fez meu corpo estremecer.  Senti o frio da morte preenchendo-me lentamente, contrastando com o calor do sangue que brotava da ferida aberta em meu pescoço e que escorria de seus lábios sedentos.
         Eu estava fraco.  Num último esforço, perguntei seu nome.
         – Nadine. – murmurou ela.
         – Nadine... – repeti ainda uma vez antes de desfalecer.

         Na manhã seguinte, meu corpo sem vida foi removido da cela, envolto em uma mortalha barata e atirado num fosso.  Na terceira noite, no entanto, meus olhos tornaram a se abrir.

         Nadine.  O último nome, a última palavra que ouvi e que pronunciei em minha vida mortal.
         Esperança.  É tudo o que tenho; tudo o que me restou...
         Ainda espero encontrá-la um dia.
         E então, finalmente, pedir seu perdão.

sábado, 9 de abril de 2011

Minha história II – De como me tornei um Vampiro – Parte I


         Minha entrada para a Ordem ocorreu num dos períodos mais complicados da história da instituição.  Desde a queda de Acre, as críticas e adversidades aos Templários só faziam aumentar.  E as freqüentes discordâncias entre as opiniões de de Molay e as de Filipe e do Papa em relação a uma nova cruzada não contribuíam muito para a reversão deste quadro.
         Mas, problemas a parte, foi com incontido entusiasmo e sincera convicção que abracei os votos de pobreza, castidade e obediência no dia de minha consagração à Ordem do Templo.  Para mim, tornar-me um templário significava muito mais do que usar no peito a cruz escarlate e empunhar uma espada contra os infiéis: era uma forma de dar à minha vida um propósito maior e dedicá-la a um objetivo que, na minha ingênua visão da época, correspondia aos mais elevados ideais da fé cristã.
         Minha inocência quanto a isso durou bem pouco.  Naquele mesmo ano, participei de minha primeira batalha...

         Em fins de maio de 1300, fizemos uma incursão à costa síria.  Nossa missão era apenas mapear as fortificações e as condições de defesa de Tortosa e das regiões vizinhas, retornando com informações que seriam úteis aos ataques que estávamos planejando para os meses seguintes.
         O Santa Anna, navegando com velas negras para confundir-se com a escuridão, partiu de Famagosta ao cair da noite com 72 homens a bordo, entre os quais eu me incluía.  O número era demasiado para o propósito de nossa viagem, mas sempre havia o risco de sermos surpreendidos por embarcações sarracenas e precisávamos estar preparados para surpresas.
         Nem todos os embarcados eram Templários e boa parte da tripulação era formada por soldados cipriotas, a começar pelo capitão, que não pertencia à Ordem e que havia sido indicado pelos governantes da ilha por conhecer como a palma da mão os mares que iríamos singrar.  Chamava-se Valantis e não me inspirava confiança.  Seu nome de família, quase impronunciável, apagou-se faz tempo de minha memória.  Tive antipatia por ele desde que o vi pela primeira vez, poucos dias antes de nossa partida.  Na ocasião, muito me incomodou a idéia de estar sob suas ordens naquela que seria a minha primeira missão militar como membro da Ordem.  Se eu pudesse prever o futuro, se soubesse o que iria acontecer, jamais teria subido a bordo daquele navio!  Mas o futuro é um jovem que caminha ligeiro à nossa frente, sem nunca permitir que vejamos o seu rosto...
         Por ser um dos poucos que sabia escrever e possuía conhecimentos de cartografia – adquiridos no tempo em que o Abade Hugues me encarregara da cópia de uma pilha de mapas antigos – fiquei responsável pelas anotações.  Chegamos pelo norte, explorando um trecho de costa praticamente deserta até passarmos por Tortosa.  Mesmo de longe, conseguimos localizar as defesas e posicioná-las no mapa com razoável precisão.  Por último, circundamos Ruad (Arwad), examinando o que era possível da pequena ilha e de sua bem protegida enseada voltada para o litoral.  Essa era a parte mais arriscada da missão, devido à proximidade que estávamos tanto da ilha quanto da terra firme.  Mas, se por um acaso nos viram, pelo menos não nos importunaram.  Tudo havia corrido como planejado e era hora de voltarmos a Chipre.  Valantis, no entanto, contrariando minhas expectativas, ordenou que continuássemos margeando a costa em direção ao sul.  Era quase manhã quando fundeamos nas proximidades de um povoado a meio caminho entre Tortosa e Tripoli, mais ou menos onde hoje se situa Al-Ramidiyah.  O capitão convocou a todos no convés e, para minha surpresa e do meu grupo, anunciou que atacaríamos o povoado.  Segundo ele, os habitantes daquele povoado eram colaboracionistas dos mamelucos egípcios e haviam recentemente interceptado e matado três enviados mongóis que tentavam chegar a Chipre trazendo mensagens de Ghazan, seu líder, endereçadas ao Mestre do Templo e ao monarca de Chipre.
         Por alguns instantes, fiquei sem saber o que fazer e senti a mesma insegurança vinda dos demais templários.  Mas estávamos sob o comando do cipriota, numa missão conjunta, e era nosso dever cumprir suas ordens.
         Rapidamente e em silêncio, barcos começaram a ser baixados.  Cinqüenta homens iriam à terra, praticamente todos soldados cipriotas, liderados pelo próprio Valantis.  Dos templários, apenas eu e outros dois homens participariam da ação; os demais ficariam a bordo, cuidando do Santa Anna e preparando o navio para uma partida ligeira.

         Mal pisamos na praia e Valantis ordenou o ataque.  As instruções eram simples: saquear e matar, poupando algumas poucas pessoas para serem interrogadas sobre o conteúdo das mensagens mongóis.
         Eu e meus dois companheiros templários não estávamos gostando nada daquilo, que não nos parecia um combate digno.  Obediência, no entanto, era algo inquestionável para um membro da Ordem e, por mais que não concordássemos com o que estava por acontecer, iríamos fazer o que nos fosse ordenado.
         O grupo avançou em silêncio, armas desembainhadas e prontas para o ofício da morte.  Eu nunca havia participado de uma batalha e meu coração estava aos pulos.  Até aquele momento, acho que não havia entendido como realmente seria.  Não havia imaginado os gritos, os pedidos de clemência; não havia pensado, nem sequer por um instante, que massacraríamos sem piedade homens fracos e indefesos, juntamente com suas mulheres e crianças.  Não; nada disso havia passado por minha cabeça.  Até aquele momento, apenas avançávamos naquele final de noite, aproximando-nos do povoado adormecido.  Eu caminhava atrás do grupo, apreensivo, ainda relutando em fazer parte daquilo.  Mas não havia espaço para a opção...  Então, percebendo nossa aproximação, um cachorro latiu.  O latido foi seguido de um ruído surdo – um golpe de espada – e de um ganido estridente.  E novamente o silêncio.  E então os primeiros rumores, os primeiros sinais de alarde.  E logo os primeiros gritos humanos.  E o crepitar do fogo, começando a tomar conta das casas que não passavam de pobres choupanas.
         Parei em meio a uma espécie de praça e olhei ao redor.  Minha garganta fechou-se e meus olhos quiseram chorar.  Soldados entravam nas cabanas, arrastavam para fora seus ocupantes, ainda atônitos, e os matavam sem qualquer hesitação, sem formular qualquer pergunta, sem demonstrar qualquer sentimento.
         E eu estava ali, parado, passivamente compactuando com tudo aquilo.  Mas não havia o que pudesse ser feito.  Eu estava sozinho, com apenas 23 anos e tinha uma visão puramente romântica da guerra.  Talvez aquilo que me parecia uma insanidade completa, fosse apenas a face terrível e feia da realidade me encarando pela primeira vez...
         Mas eu não tomaria parte naquela carnificina covarde.  Não eu; não o filho de Gilbert de Pierrefort; não um Cavaleiro do Templo de Salomão!
         Eu não podia lutar contra os soldados cipriotas, nossos aliados, mas podia tentar salvar quantas almas pudesse.  E podia, ao regressar à Chipre, denunciar aquele massacre inútil de gente indefesa e garantir que eventos como este não se repetissem.
        
         Entrei numa cabana que parecia ainda intocada.  Era pequena; não mais de três cômodos.  Os dois primeiros estavam vazios.  No terceiro, surpreendi uma mulher, desesperada, procurando esconder alguma coisa sob uma velha colcha.  Ao ver-me, ajoelhou-se diante de mim, chorando e balbuciando num idioma incompreensível.  Levei o dedo aos lábios, fazendo-lhe sinal para que não fizesse barulho e tentando explicar que não lhe faria mal.  Foi então que percebi um movimento sob a colcha.  Fiz menção de aproximar-me do monte de pano, mas a mulher agarrou-se às minhas pernas e começou a gritar e suplicar.  Além de francês, eu falava latim, grego e catalão, mas não a língua daquela mulher, que me pareceu um dialeto árabe do qual reconheci uma ou duas palavras.  Por instinto, gritei com ela em francês, pedindo que se calasse, dizendo que eu não a maltrataria.  Neste momento, o monte de pano rolou para o lado e uma jovem mulher levantou-se do chão.  Seu rosto, iluminado por um fio de luz da manhã que agora penetrava o quarto, me pareceu irreal, tamanha era a sua beleza!  Devia ter alguns anos menos que eu, cabelos escuros e longos, olhos da cor do mel e a pele clara dourada pelo sol da Síria.  Nunca, até aquele dia, eu havia visto uma mulher tão linda!
         – Podemos confiar no que dizes? – perguntou-me num francês perfeito.
         Consegui apenas balbuciar que sim, tão impressionado estava com a visão da jovem.  Ela dirigiu-se à senhora no dialeto local, tranqüilizando-a.  A mulher debulhou-se ainda mais em lágrimas e pôs-se a beijar meus pés.  Enquanto me desvencilhava da pobre mulher, a menina me explicou que era filha daquela senhora com um cruzado franco que falecera alguns anos antes.  Sua mãe a estava tentando proteger do destino que teria uma jovem mulher tomada como espólio naquela batalha.
         Eu estava ainda pensando como poderia salvá-las quando ouvi vozes e passos apressados vindo do cômodo adjacente.  O rosto da mulher mais velha retorceu-se de pavor e ela, movida pelo impulso materno, correu ao encontro dos soldados decidida a evitar que encontrassem sua filha.
         Empurrei a garota para um canto no chão e joguei as colchas sobre ela.  Corri para a sala para proteger a mãe, mas os soldados já a haviam matado e estavam arrastando para fora da casa o corpo sem vida.  Um deles deve ter ficado curioso ao me ver sair de dentro da casa; separou-se do outro e correu para verificar o que havia no quarto de onde eu viera.  Eu o acompanhei.  Ele parou na porta e olhou o aposento que, a não ser por um par de tapetes desgastados e uma pilha de colchas velhas, lhe pareceu completamente vazio.  Olhou-me com escárnio, virou-me as costas e saiu apressado.
         Eu também saí.  A ação parecia já haver acabado.  Uma pilha de cadáveres tinha sido formada em meio à praça e os soldados cipriotas, a maior parte deles carregando alguma pilhagem, já se preparavam para retornar ao navio.  Procurei meus dois companheiros de Ordem e os encontrei afastados do grupo, observando a movimentação com olhar crítico.
         – Mensagens mongóis uma ova! – comentou Jean-Baptiste, o mais velho dos dois. – Não fizeram nenhuma pergunta sobre isso a ninguém!  Eles só estavam interessados em matar e roubar!
         – É uma vergonha para nós termos presenciado isso! – retrucou o outro em voz baixa. – Não creio que Henri de Lusignan, que é com certeza um bom cristão, tenha autorizado um massacre sem propósito como este.
         – E você, Henri? – perguntou-me Jean-Baptiste. – Concorda conosco?
         – D’accord! – respondi manisfestando minha indignação. – E pretendo solicitar uma reunião com de Molay tão logo cheguemos a Chipre para pô-lo a par do que aconteceu por aqui.

         Voltamos ao navio com esta determinação e assim o fizemos.  O Grão-Mestre não se mostrou muito preocupado com nosso relato, mas prometeu cobrar explicações do tal Valantis.  Se ele realmente o fez, nunca nos deu qualquer retorno.  Não o culpo; ele tinha coisas muito mais importantes com que se preocupar naquele momento.  Pouco tempo depois destes fatos, numa operação que reuniu forças cipriotas, templárias e hospitalárias, atacamos Tortosa e chegamos a tomar conta de parte da cidade.  Também tomamos Ruad, em parte graças às informações que coletamos.  O plano era manter posições até a chegada do exército mongol enviado por Ghazan, o que não chegou a acontecer e, obviamente, tivemos que recuar.
        
         Participei de várias batalhas nos dois anos que se seguiram e entendi que a guerra é sempre feia e cruel, mas que nós, Templários, sempre a lutamos com honra.
         Em fins de 1302, após os muitos fracassos das campanhas cristãs no oriente, regressei à França pondo um fim à minha vida de guerreiro.  De tudo o que vi no Outremer, nada ficou tão estampado em minha memória quanto o massacre ao povoado sírio, o qual mesmo hoje, séculos depois, ainda me custa recordar.  Várias vezes indaguei-me o motivo pelo qual Deus me havia levado até aquela aldeia e por anos apeguei-me à idéia de que Ele me tinha colocado ali para que pelo menos uma vida fosse salva: a da bela mulher cujo nome eu desconhecia e cuja imagem povoava meus sonhos, noite após noite, desde então.