sábado, 2 de julho de 2011

Minha história VIII – Em defesa da Ordem - Parte II


         No final do outono de 1309, sentia-me suficientemente preparado para enfrentar Filipe.  Era hora de colocar em prática o meu plano.  O primeiro passo seria conseguir a aprovação do Grão-Mestre.  Era necessário que ele aceitasse a minha ajuda e que fizesse a sua parte conclamando os irmãos a reagirem.
         De Molay estava encarcerado em uma das prisões do rei.  Não foi fácil achá-lo, o que só me foi possível devido ao acesso que tive aos registros de movimentação dos prisioneiros.  Sem isso, teria me tomado um tempo enorme encontrá-lo, já que os irmãos eram mantidos em um número muito grande de lugares que incluíam desde prisões comuns a calabouços de mosteiros e fortalezas e até mesmo casas pertencentes à própria Ordem.
         Nosso encontro, como não poderia deixar de ser, ocorreu numa madrugada de finais de outubro.  As noites já começavam a ficar mais frias e nem sempre era fácil dormir naquelas celas desprovidas de conforto.  O Grão-Mestre, no entanto, endurecido por uma vida de campanhas e frugalidade, parecia não se importar com as condições do tempo e dormia um sono profundo quando me propus a acordá-lo.
         – Meu senhor, acorde! – sussurrei próximo ao seu rosto.
         Ele abriu os olhos sem pressa, ajustando a vista já cansada à pouca claridade da cela.  Estava com cerca de 65 anos, 44 dos quais dedicados à Milícia do Templo, e me pareceu muito mais velho do que a figura do Grão-Mestre que eu guardava em minha memória.
         – O que...  Quem é você? – balbuciou o Grão-Mestre, ainda aturdido.
         – Pierrefort, senhor.  Do Templo de Chipre.  Recorda-se mim?
         – Pierrefort! – disse o velho esboçando um sorriso e colocando a mão em meu rosto. – Me disseram que você havia morrido!  Como você entrou aqui?
         – Não tenho tempo para explicar isso agora, senhor, mas estou aqui para ajudá-lo.  E para ajudar a Ordem.
         – Ah, meu bom rapaz, a única pessoa que pode ajudar a Ordem agora é o Papa Clemente e, sinceramente, não sei se ele conseguirá resistir à pressão feita pelo rei.
         – Não é hora de perder as esperanças, senhor.  É hora de reagir e, como nosso líder, esta reação deve partir do senhor!
         – Líder...  Não mereço mais liderar a Ordem.  Eu a traí!  Diante da mera ameaça do uso de tortura, confessei, em nome da Ordem, crimes que jamais cometi.  E escrevi aos irmãos estimulando-os a agirem como eu...  Não posso mais liderar ninguém.
         De Molay calou-se; a cabeça baixa evidenciando a imensa vergonha que sentia.
         – Senhor, não se culpe.  De início, todos pensamos que tudo se esclareceria em pouco tempo e que a Igreja não permitiria este abuso de Filipe. Ninguém poderia imaginar que ele estivesse disposto a ir tão longe!  Se isso lhe serve de alento, eu também confessei.  E também me arrependo disso.  Por isso mesmo quero me redimir.  Por isso pretendo lutar até o fim contra a tirania deste rei infame.  E, se estiver ao meu alcance e se Deus me ajudar, pretendo limpar o nome da Ordem para a qual entrei a convite seu; a Ordem que, através de seus exemplos, aprendi a amar.
         O Grão-Mestre ergueu a cabeça e sentou-se em seu catre.
         – Então... não se envergonha de mim? – disse o velho, olhando-me nos olhos pela primeira vez.
         – Senhor, eu daria a minha vida para segui-lo novamente sob a bandeira do Templo. – falei ajoelhando-me diante dele.
         De Molay ergueu-se, comovido.
         – Levante-se, Pierrefort. – disse ele tocando meu ombro. – Talvez você não saiba o bem que fez a este velho soldado, mas lhe sou muito grato por me ter dado esperanças.  O que quer que eu faça?
         – Quero que diga a verdade, senhor.  A Comissão Apostólica está prestes a se reunir.  Eles o convocarão para depor.  Retrate-se!  Diga que sua confissão foi obtida sob ameaça de tortura, como a de todos os outros irmãos.  Defenda a Ordem, senhor!
         O Grão-Mestre avaliou por alguns instantes o que eu lhe pedia.
         – Posso me retratar e posso estimular os demais templários a negarem seus testemunhos anteriores, mas não acredito que possa fazer mais do que isso.  Sou um homem de pouca instrução e não tenho como defender a Ordem contra os experientes juristas de Filipe.  Isso, meu caro, está além da minha capacidade.
         – Então declare isso diante da Comissão e diga que gostaria de ser assessorado por um comitê de irmãos de sua confiança.  Pietro di Bologna foi um dos nomes que me passaram pela cabeça.  Já tive algumas boas conversas com ele sobre Direito Canônico e ele é um advogado extremamente competente.
         – O italiano?  Bem lembrado! – falou sorrindo. – Parece que você já pensou em tudo... Mais alguma indicação?
         – Pensei em um grupo pequeno e seleto; irmãos realmente confiáveis e de integridade notoriamente inquestionável.  Eu incluiria nesta lista o irmão capelão Renaud de Provins e os cavaleiros Bertrán de Sartigues e Guillaume de Chambonnet.  Estes dois últimos, além de não terem confessado nada quando o Bispo de Clermont os interrogou, são cavaleiros de Auvergne, minha região natal, e nossas famílias mantêm relações de amizade há muito tempo.
         – Farei como me pede, Pierrefort.  E que Deus esteja conosco!
         – Ele está, meu senhor, e eu também estarei. Fui tido como morto e é melhor que todos pensem que isto realmente aconteceu.  Apenas o senhor e este pequeno grupo que mencionei saberão que ainda vivo.  Em liberdade, poderei ajudá-los.  Debaterei as questões legais com Pierre – me acostumei a chamá-lo pela versão francesa de seu nome – e trarei notícias de fora destas grades para municiá-los com informações atualizadas.  Tenho acesso inclusive a documentos que são restritos a de Nogaret e aos demais juristas de Filipe...
         Ao ouvir estas palavras, de Molay pareceu hesitar.
         – Como?  Como você consegue ter acesso a isso?  E como conseguiu entrar aqui?
         Pelo tom de sua voz, percebi que ele começava a desconfiar de minha lealdade e eu não poderia deixar que isso acontecesse.
         – Foi Deus quem quis que eu estivesse hoje em liberdade, senhor.  Disseram-lhe que morri?  Pois bem, eu realmente morri!  Mas Ele me trouxe de volta do mundo dos mortos!  E me deu poderes para ir e vir e para atravessar paredes!
         A expressão no rosto do Grão-Mestre me dizia que ele não acreditava em mim.
         – Senhor, pela sua Fé, peço que acredite em mim.  Mas, se minha palavra não é o bastante, se, como Tomé, precisa de provas, observe-me!
         Dizendo isso, caminhei em direção às grades, transformei-me em névoa por um instante e atravessei as barras, assumindo no instante seguinte a forma humana do lado de fora da cela.
         Olhei para trás.  Dentro da cela, de joelhos, como se tivesse acabado de presenciar um milagre, o Grão-Mestre rezava fervorosamente.


         Em 26 de novembro de 1309, Jacques de Molay apresentou-se à Comissão Apostólica e declarou estar disposto a defender a Ordem e invalidou seu testemunho anterior.  Dois dias depois, compareceu novamente à Comissão e adotou a postura que iria manter até o final do processo: já que apenas o Papa podia julgá-lo, falaria apenas com o Pontífice.

         As notícias correm e os ânimos mudam.
         Em 3 de fevereiro de 1310, 15 templários comparecem à Comissão para defender o Templo. Quando de Molay é trazido pela terceira vez diante da Comissão Apostólica, em 2 de março de 1310, outros 500 irmãos já se haviam manifestado em defesa da Ordem.  Um mês depois, este número já passava de 600.
         A reação do Templo havia finalmente começado!

Nenhum comentário: