Agora eu era uma espécie de "consultor jurídico" da Ordem. E o que era melhor, já que todos estavam presos: eu era um "consultor externo".
Meu trabalho consistia em obter informações que nos permitissem antecipar os passos da equipe do rei. Para isso, passava boa parte de minhas noites nas dependências do Louvre – ou de qualquer outro lugar que me fosse proibido ao acesso – pesquisando documentos ou ouvindo conversas que me pudessem interessar.
Lendo e relendo os depoimentos contidos nos autos do processo, chamaram-me a atenção as narrativas de cerimônias de iniciação de diversos membros da Ordem. E não pude deixar de recordar-me da minha...
Após a sugestão de de Molay quanto ao meu ingresso para a Milícia do Templo e os procedimentos formais de avaliação e aprovação do meu nome pelo Conselho da Ordem, foi marcada a data de minha cerimônia de ingresso.
Na noite de minha admissão, o Preceptor do Templo de Chipre abriu os trabalhos examinando por três vezes o documento que descrevia o protocolo que iríamos seguir, certificando-se de que o procedimento oficial seria o utilizado. Concluída esta etapa, um veterano do Templo me expôs o regulamento da Ordem, salientando a simplicidade e a disciplina que dominariam os meus dias daquele momento em diante. A Regra do Templo, redigida quase 200 anos antes por Bernard de Clairvaux, São Bernardo, com base na Regra de São Bento, continha as rígidas normas a serem seguidas por todos aqueles que aderissem à Ordem e, em breve, seria também a regra que regeria a minha vida.
– Sabereis suportar o insuportável? – perguntou-me o Oficial do Rito ao final da leitura.
– Senhor, com a ajuda de Deus suportarei qualquer coisa! – respondi de acordo com o protocolo e também com minha convicção.
O que se passou depois não foi muito diferente do que acontece hoje com um recruta do BOPE: o Oficial, diante de todos os presentes, me pressionou de todas as formas no intuito de avaliar minha persistência e a firmeza de minha decisão e por muito pouco não mencionou a famosa frase "Pede pra sair!".
Quando convenceu-se de meu merecimento, permitiu que eu proferisse meus votos de pobreza, castidade e obediência. Feito isso, livrei-me de minhas roupas mundanas e vesti pela primeira vez o manto da Ordem. O Preceptor, então, aproximou-se de mim e cingiu minha cintura com o cordão monástico, atando-o com um nó. A partir daquele momento eu me tornava um templário!
O trecho de cerimônia documentado nos Estatutos da Ordem terminara e boa parte da audiência, incluindo o Preceptor de Chipre, começava a se retirar. O Oficial que conduzira o rito, no entanto, antes de sair, confiou-me a um irmão veterano, que me conduziu, acompanhado por outros três templários, a um aposento atrás da sacristia.
Uma vez lá, o veterano, que se chamava Barthélemy de Quincy, pediu a um dos irmãos que nos acompanhava que fechasse a porta.
Sem maiores explicações, virou-se para mim e disse em tom de comando: – Senhor, todas as promessas que fizeste são vazias de palavra. Agora, devereis dar prova de vós com os fatos!
Dizendo isso, mostrou-me um crucifixo e ordenou: – Ordeno-vos que renegues aquele que está pregado à esta cruz! Fazei isto cuspindo sobre este símbolo da vossa fé!
Apesar de surpreso, reagi de imediato.
– Jamais renegarei o Cristo e jamais macularei a Santa Cruz!
– Jurastes obedecer a qualquer comando de vossos superiores e agora, à primeira ordem, ousais mostrar-vos desobediente?
Neste momento, os dois templários que estavam atrás de mim dominaram-me os braços enquanto o terceiro irmão encostava a lâmina de um punhal à minha garganta.
– Estareis disposto a morrer por esta insurreição? – desafiou-me de Quincy.
– Sim! – respondi novamente sem hesitar, mesmo esperando o pior. – Mantenho o que disse. Jamais trairei minha Fé! Jurei obediência à Milícia de Cristo, à Ordem que julguei ser a defensora da Igreja! Devo obediência a meus superiores mas não há aqui entre vós quem seja superior ao Cristo, a quem obedeço em primeiro lugar. Por isso, jamais farei o que me pedis!
O veterano olhou-me nos olhos e sorriu. As mãos que prendiam meus braços cederam e a fria lâmina afastou-se da minha garganta.
– Muito bem, Pierrefort; agora sabemos do que sois feito!
Dito isso, de Quincy deu-me o beijo monástico, selando assim minha entrada para a Ordem.
Agora, ali, diante de todos aqueles relatos que compunham o processo, dei-me conta de que o que acontecera comigo também se passara com todos os outros irmãos. Havia, no entanto, largas variações.
Após o término da parte pública da cerimônia, todo postulante era submetido a um segundo ritual secreto, a portas fechadas, onde lhe era ordenado que renegasse o Cristo e que cuspisse sobre a cruz. Esta era a parte comum a quase todos os depoimentos que li; a partir daí, os relatos divergiam bastante. O que se desenrolava então dependeria da reação do postulante e do caráter e orientação daquele que oficiava o rito. Havia casos em que o postulante hesitava e era então ameaçado ou submetido a punições, de brandas a severas, até que obedecesse. Alguns, opunham-se tão firmemente às ordens recebidas que era o oficial quem acabava por ceder, pedindo-lhes que apenas fingissem obedecer às ordens ou mesmo dispensando-os de seu cumprimento sob a condição de que não mencionassem o fato a ninguém. E havia também, é claro, aqueles que cediam de imediato, obedeciam e nada lhes chegava a acontecer.
Assim, num certo sentido, algumas das acusações que pesavam contra a Ordem eram, portanto, verdadeiras. A grande distorção era que estes fatos não implicavam necessariamente em heresia! Sua conotação, a meu ver, era completamente outra: antecipava-se, com aquela cerimônia, as reações do postulante, fazendo-o revelar sua verdadeira natureza e, desta forma, suas reais aptidões. Isso explicava porque alguns noviços eram imediatamente integrados ao front enquanto outros eram enviados diretamente aos centros administrativos da Ordem.
Também acredito que o rito pretendesse antecipar a experiência de captura do postulante pelos sarracenos, uma vez que estes, era sabido, forçariam o templário a renegar sua fé e a prová-lo cuspindo sobre a cruz. Ao vivê-la antecipadamente, o irmão estaria mais preparado para reagir de forma digna caso viesse a cair em mãos infiéis.
O problema é que, depois do episódio de iniciação, não se falava mais sobre isso e cada um tirava suas conclusões baseadas em sua própria experiência. E mais tarde, quando o então veterano era encarregado de administrar o rito a outro noviço, fazia-o unicamente a seu critério e sem qualquer orientação. Li no processo histórias interessantes, como a de um postulante que demonstrou tamanho horror diante do que lhe ordenavam, que os presentes caíram na gargalhada e o dispensaram sem qualquer exigência. Para estes templários – e daí por diante, também para o noviço que tomara parte daquilo – a cerimônia de iniciação não passava de um trote de escola!
No meu caso, creio que tive muita sorte. Barthélemy de Quincy era um homem de princípios nobres e um guerreiro de valor. Lutei sob seu comando diversas vezes. Por ironia do destino, não estive ao seu lado em sua última batalha, cerca de três anos depois de meu ingresso na Ordem, quando de Quincy lutou até a morte defendendo Ruad, que infelizmente caiu com ele.
A verdade é que nem todo mundo compreendia as coisas direito e os abusos sem dúvida ocorriam. E mesmo que o Papa – e que até o próprio Filipe – percebessem claramente a diferença entre alguns aspectos dos nossos ritos e o que pode ser verdadeiramente classificado como heresia, boa parte do mal já havia sido feito. A Ordem do Templo já não era mais vista como a ponta aguçada da espada brilhante da cristandade. E isso nem mesmo um vampiro poderia reverter.
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