No ano 891, sucedendo a Estevão V, sobe ao trono apostólico o papa Formoso. Hábil político, talvez seu único erro estratégico tenha sido o de apoiar o rei da Alemanha, Arnolfo, em sua ambição de tornar-se Imperador do Sacro Império Romano, título também cobiçado pela casa dos Duques de Spoleto, poderosa e influente família italiana.
Em fevereiro de 896, Arnolfo de Caríntia chega a Roma e recebe das mãos de Formoso, em cerimônia solene, a coroa imperial. Arnolfo, no entanto, ostentaria por pouco tempo esta coroa. Da mesma forma, o cetro de Pedro permaneceria com Formoso apenas por mais alguns meses, até que a morte o arrebatasse de suas mãos de forma inesperada. Nada foi provado, mas suspeita-se que Formoso tenha morrido envenenado por ordem de Agiltrude, Duquesa de Spoleto. A mesma duquesa teria então influenciado a eleição de Estevão VI para o cargo de pontífice, colocando assim no trono papal um franco opositor ao partido alemão e à facção de Formoso. Na posição de Papa, Estevão abre contra o falecido Formoso um processo canônico, resgatando falhas cometidas pelo antigo pontífice durante sua trajetória eclesiástica. Com a condenação de Formoso, Estevão pretendia declarar ilegítimo o papado de seu antigo adversário político, tornando conseqüentemente ilegítimas todas as suas promulgações, entre elas a coroação de Arnolfo.
Para o julgamento, no entanto, realizado 9 meses após o falecimento de Formoso, a presença do réu era imprescindível.
Assim, o corpo putrefato do antigo papa foi retirado de sua tumba, vestido e paramentado novamente como pontífice e colocado sobre o trono papal. A medida que iam sendo lidas as acusações contra o cadáver, um jovem diácono, autorizado a falar em nome do morto, reconhecia a culpa que lhe era imputada.
Ao final, após a condenação, Formoso foi considerado ilegítimo. As vestes papais lhe foram então retiradas do corpo decomposto, a língua com a qual ditara em vida suas sentenças e os três dedos da mão direita que tantas vezes usara para abençoar ou selar seus atos lhe foram arrancados. Numa última humilhação, seu corpo nú, podre e mutilado, foi arrastado pela cidade e finalmente atirado no Tevere.
Este infame episódio, que passara para a história como o "Concílio do Cadáver", ameaçava agora repetir-se e isso tirava o sono de Clemente. Enfermo e alquebrado, o pobre Papa andava de um lado para o outro em seus aposentos privados, sem notar o pequeno morcego que, junto ao teto, o observava de um dos cantos do quarto.
A ameaça de Filipe de instaurar um processo contra o falecido Bonifácio VIII, acusando-o de bruxaria e de outros crimes contra a Fé e julgando-o de corpo presente, reeditando assim o hediondo Concílio do Cadáver, havia afetado Clemente de forma profunda. Desde que assumira o papado, Clemente esforçara-se dia após dia para reconstruir as estremecidas relações entre a Igreja e a França, maior potência da cristandade ocidental, e para harmonizar as facções que disputavam o poder no seio da Santa Sé. Nestes anos de árduo trabalho, havia conseguido estabelecer um equilíbrio frágil entre estas forças. Mas o julgamento de Bonifácio reabriria velhas feridas políticas e fracionaria novamente a unidade da Igreja, destruindo todo o trabalho ao qual o Papa tanto se dedicara.
Clemente entendia perfeitamente que as conseqüências da concretização da ameaça de Filipe iriam muito além da mera divisão do clero: Formoso havia sido julgado pela própria Igreja, enquanto Bonifácio seria processado e condenado pelo poder laico, abrindo um precedente inusitado e perigosíssimo.
Clemente, abatido, ajoelhou-se diante do altar que havia no quarto. De onde eu estava, ouvi a oração do alquebrado pontífice:
– Senhor, não permitais que Vosso filho Benedito Caetani, que sob o nome de Bonifácio VIII ocupou o Trono de São Pedro, seja tão injustamente humilhado! Não permitais, Senhor, que os ossos deste Vosso servo fiel sejam exumados e queimados em público como os de um adorador do inimigo da raça humana.
Depois de uma prolongada pausa, interrompida por um profundo suspiro, Clemente concluiu sua oração.
– Dai-me a clareza da Vossa Luz, meu Deus, para que eu tome a decisão correta, pois Filipe me fará escolher entre a Vossa Igreja e o Vosso Exército.
Entendi perfeitamente o dilema em que o pontífice se encontrava. Filipe pressionava-o com o processo contra Bonifácio, mas deixava à Clemente uma única saída: entregar a Ordem do Templo à sua própria sorte, retirando de sobre ela a proteção papal e utilizando-a como moeda de troca na terrível barganha proposta pelo rei.
Abri minhas asas escuras e esvoacei janela afora ganhando a noite. Aqueles que defendiam a minha Ordem precisavam tomar conhecimento do que eu ouvira.