sábado, 16 de julho de 2011

Minha história IX – A iniciação


         Agora eu era uma espécie de "consultor jurídico" da Ordem.  E o que era melhor, já que todos estavam presos: eu era um "consultor externo".
         Meu trabalho consistia em obter informações que nos permitissem antecipar os passos da equipe do rei.  Para isso, passava boa parte de minhas noites nas dependências do Louvre – ou de qualquer outro lugar que me fosse proibido ao acesso – pesquisando documentos ou ouvindo conversas que me pudessem interessar.
         Lendo e relendo os depoimentos contidos nos autos do processo, chamaram-me a atenção as narrativas de cerimônias de iniciação de diversos membros da Ordem.  E não pude deixar de recordar-me da minha...
        
         Após a sugestão de de Molay quanto ao meu ingresso para a Milícia do Templo e os procedimentos formais de avaliação e aprovação do meu nome pelo Conselho da Ordem, foi marcada a data de minha cerimônia de ingresso.
         Na noite de minha admissão, o Preceptor do Templo de Chipre abriu os trabalhos examinando por três vezes o documento que descrevia o protocolo que iríamos seguir, certificando-se de que o procedimento oficial seria o utilizado.  Concluída esta etapa, um veterano do Templo me expôs o regulamento da Ordem, salientando a simplicidade e a disciplina que dominariam os meus dias daquele momento em diante.  A Regra do Templo, redigida quase 200 anos antes por Bernard de Clairvaux, São Bernardo, com base na Regra de São Bento, continha as rígidas normas a serem seguidas por todos aqueles que aderissem à Ordem e, em breve, seria também a regra que regeria a minha vida.

         – Sabereis suportar o insuportável? – perguntou-me o Oficial do Rito ao final da leitura.
         – Senhor, com a ajuda de Deus suportarei qualquer coisa! – respondi de acordo com o protocolo e também com minha convicção.
         O que se passou depois não foi muito diferente do que acontece hoje com um recruta do BOPE: o Oficial, diante de todos os presentes, me pressionou de todas as formas no intuito de avaliar minha persistência e a firmeza de minha decisão e por muito pouco não mencionou a famosa frase "Pede pra sair!".
         Quando convenceu-se de meu merecimento, permitiu que eu proferisse meus votos de pobreza, castidade e obediência.  Feito isso, livrei-me de minhas roupas mundanas e vesti pela primeira vez o manto da Ordem.  O Preceptor, então, aproximou-se de mim e cingiu minha cintura com o cordão monástico, atando-o com um nó.  A partir daquele momento eu me tornava um templário!

         O trecho de cerimônia documentado nos Estatutos da Ordem terminara e boa parte da audiência, incluindo o Preceptor de Chipre, começava a se retirar.  O Oficial que conduzira o rito, no entanto, antes de sair, confiou-me a um irmão veterano, que me conduziu, acompanhado por outros três templários, a um aposento atrás da sacristia.
         Uma vez lá, o veterano, que se chamava Barthélemy de Quincy, pediu a um dos irmãos que nos acompanhava que fechasse a porta.
         Sem maiores explicações, virou-se para mim e disse em tom de comando: – Senhor, todas as promessas que fizeste são vazias de palavra.  Agora, devereis dar prova de vós com os fatos!
         Dizendo isso, mostrou-me um crucifixo e ordenou: – Ordeno-vos que renegues aquele que está pregado à esta cruz!  Fazei isto cuspindo sobre este símbolo da vossa fé!
         Apesar de surpreso, reagi de imediato.
         – Jamais renegarei o Cristo e jamais macularei a Santa Cruz!
         – Jurastes obedecer a qualquer comando de vossos superiores e agora, à primeira ordem, ousais mostrar-vos desobediente?
         Neste momento, os dois templários que estavam atrás de mim dominaram-me os braços enquanto o terceiro irmão encostava a lâmina de um punhal à minha garganta.
         – Estareis disposto a morrer por esta insurreição? – desafiou-me de Quincy.
         – Sim! – respondi novamente sem hesitar, mesmo esperando o pior. – Mantenho o que disse.  Jamais trairei minha Fé!  Jurei obediência à Milícia de Cristo, à Ordem que julguei ser a defensora da Igreja!  Devo obediência a meus superiores mas não há aqui entre vós quem seja superior ao Cristo, a quem obedeço em primeiro lugar.  Por isso, jamais farei o que me pedis!
         O veterano olhou-me nos olhos e sorriu.  As mãos que prendiam meus braços cederam e a fria lâmina afastou-se da minha garganta.
         – Muito bem, Pierrefort; agora sabemos do que sois feito!
         Dito isso, de Quincy deu-me o beijo monástico, selando assim minha entrada para a Ordem.

         Agora, ali, diante de todos aqueles relatos que compunham o processo, dei-me conta de que o que acontecera comigo também se passara com todos os outros irmãos.  Havia, no entanto, largas variações.
         Após o término da parte pública da cerimônia, todo postulante era submetido a um segundo ritual secreto, a portas fechadas, onde lhe era ordenado que renegasse o Cristo e que cuspisse sobre a cruz.  Esta era a parte comum a quase todos os depoimentos que li; a partir daí, os relatos divergiam bastante.  O que se desenrolava então dependeria da reação do postulante e do caráter e orientação daquele que oficiava o rito.  Havia casos em que o postulante hesitava e era então ameaçado ou submetido a punições, de brandas a severas, até que obedecesse.  Alguns, opunham-se tão firmemente às ordens recebidas que era o oficial quem acabava por ceder, pedindo-lhes que apenas fingissem obedecer às ordens ou mesmo dispensando-os de seu cumprimento sob a condição de que não mencionassem o fato a ninguém.  E havia também, é claro, aqueles que cediam de imediato, obedeciam e nada lhes chegava a acontecer.
         Assim, num certo sentido, algumas das acusações que pesavam contra a Ordem eram, portanto, verdadeiras.  A grande distorção era que estes fatos não implicavam necessariamente em heresia!  Sua conotação, a meu ver, era completamente outra: antecipava-se, com aquela cerimônia, as reações do postulante, fazendo-o revelar sua verdadeira natureza e, desta forma, suas reais aptidões.  Isso explicava porque alguns noviços eram imediatamente integrados ao front enquanto outros eram enviados diretamente aos centros administrativos da Ordem.
         Também acredito que o rito pretendesse antecipar a experiência de captura do postulante pelos sarracenos, uma vez que estes, era sabido, forçariam o templário a renegar sua fé e a prová-lo cuspindo sobre a cruz.  Ao vivê-la antecipadamente, o irmão estaria mais preparado para reagir de forma digna caso viesse a cair em mãos infiéis.
         O problema é que, depois do episódio de iniciação, não se falava mais sobre isso e cada um tirava suas conclusões baseadas em sua própria experiência.  E mais tarde, quando o então veterano era encarregado de administrar o rito a outro noviço, fazia-o unicamente a seu critério e sem qualquer orientação.  Li no processo histórias interessantes, como a de um postulante que demonstrou tamanho horror diante do que lhe ordenavam, que os presentes caíram na gargalhada e o dispensaram sem qualquer exigência.  Para estes templários – e daí por diante, também para o noviço que tomara parte daquilo – a cerimônia de iniciação não passava de um trote de escola!
         No meu caso, creio que tive muita sorte.  Barthélemy de Quincy era um homem de princípios nobres e um guerreiro de valor.  Lutei sob seu comando diversas vezes.  Por ironia do destino, não estive ao seu lado em sua última batalha, cerca de três anos depois de meu ingresso na Ordem, quando de Quincy lutou até a morte defendendo Ruad, que infelizmente caiu com ele.

         A verdade é que nem todo mundo compreendia as coisas direito e os abusos sem dúvida ocorriam.  E mesmo que o Papa – e que até o próprio Filipe – percebessem claramente a diferença entre alguns aspectos dos nossos ritos e o que pode ser verdadeiramente classificado como heresia, boa parte do mal já havia sido feito.  A Ordem do Templo já não era mais vista como a ponta aguçada da espada brilhante da cristandade.  E isso nem mesmo um vampiro poderia reverter.

sábado, 2 de julho de 2011

Minha história VIII – Em defesa da Ordem - Parte II


         No final do outono de 1309, sentia-me suficientemente preparado para enfrentar Filipe.  Era hora de colocar em prática o meu plano.  O primeiro passo seria conseguir a aprovação do Grão-Mestre.  Era necessário que ele aceitasse a minha ajuda e que fizesse a sua parte conclamando os irmãos a reagirem.
         De Molay estava encarcerado em uma das prisões do rei.  Não foi fácil achá-lo, o que só me foi possível devido ao acesso que tive aos registros de movimentação dos prisioneiros.  Sem isso, teria me tomado um tempo enorme encontrá-lo, já que os irmãos eram mantidos em um número muito grande de lugares que incluíam desde prisões comuns a calabouços de mosteiros e fortalezas e até mesmo casas pertencentes à própria Ordem.
         Nosso encontro, como não poderia deixar de ser, ocorreu numa madrugada de finais de outubro.  As noites já começavam a ficar mais frias e nem sempre era fácil dormir naquelas celas desprovidas de conforto.  O Grão-Mestre, no entanto, endurecido por uma vida de campanhas e frugalidade, parecia não se importar com as condições do tempo e dormia um sono profundo quando me propus a acordá-lo.
         – Meu senhor, acorde! – sussurrei próximo ao seu rosto.
         Ele abriu os olhos sem pressa, ajustando a vista já cansada à pouca claridade da cela.  Estava com cerca de 65 anos, 44 dos quais dedicados à Milícia do Templo, e me pareceu muito mais velho do que a figura do Grão-Mestre que eu guardava em minha memória.
         – O que...  Quem é você? – balbuciou o Grão-Mestre, ainda aturdido.
         – Pierrefort, senhor.  Do Templo de Chipre.  Recorda-se mim?
         – Pierrefort! – disse o velho esboçando um sorriso e colocando a mão em meu rosto. – Me disseram que você havia morrido!  Como você entrou aqui?
         – Não tenho tempo para explicar isso agora, senhor, mas estou aqui para ajudá-lo.  E para ajudar a Ordem.
         – Ah, meu bom rapaz, a única pessoa que pode ajudar a Ordem agora é o Papa Clemente e, sinceramente, não sei se ele conseguirá resistir à pressão feita pelo rei.
         – Não é hora de perder as esperanças, senhor.  É hora de reagir e, como nosso líder, esta reação deve partir do senhor!
         – Líder...  Não mereço mais liderar a Ordem.  Eu a traí!  Diante da mera ameaça do uso de tortura, confessei, em nome da Ordem, crimes que jamais cometi.  E escrevi aos irmãos estimulando-os a agirem como eu...  Não posso mais liderar ninguém.
         De Molay calou-se; a cabeça baixa evidenciando a imensa vergonha que sentia.
         – Senhor, não se culpe.  De início, todos pensamos que tudo se esclareceria em pouco tempo e que a Igreja não permitiria este abuso de Filipe. Ninguém poderia imaginar que ele estivesse disposto a ir tão longe!  Se isso lhe serve de alento, eu também confessei.  E também me arrependo disso.  Por isso mesmo quero me redimir.  Por isso pretendo lutar até o fim contra a tirania deste rei infame.  E, se estiver ao meu alcance e se Deus me ajudar, pretendo limpar o nome da Ordem para a qual entrei a convite seu; a Ordem que, através de seus exemplos, aprendi a amar.
         O Grão-Mestre ergueu a cabeça e sentou-se em seu catre.
         – Então... não se envergonha de mim? – disse o velho, olhando-me nos olhos pela primeira vez.
         – Senhor, eu daria a minha vida para segui-lo novamente sob a bandeira do Templo. – falei ajoelhando-me diante dele.
         De Molay ergueu-se, comovido.
         – Levante-se, Pierrefort. – disse ele tocando meu ombro. – Talvez você não saiba o bem que fez a este velho soldado, mas lhe sou muito grato por me ter dado esperanças.  O que quer que eu faça?
         – Quero que diga a verdade, senhor.  A Comissão Apostólica está prestes a se reunir.  Eles o convocarão para depor.  Retrate-se!  Diga que sua confissão foi obtida sob ameaça de tortura, como a de todos os outros irmãos.  Defenda a Ordem, senhor!
         O Grão-Mestre avaliou por alguns instantes o que eu lhe pedia.
         – Posso me retratar e posso estimular os demais templários a negarem seus testemunhos anteriores, mas não acredito que possa fazer mais do que isso.  Sou um homem de pouca instrução e não tenho como defender a Ordem contra os experientes juristas de Filipe.  Isso, meu caro, está além da minha capacidade.
         – Então declare isso diante da Comissão e diga que gostaria de ser assessorado por um comitê de irmãos de sua confiança.  Pietro di Bologna foi um dos nomes que me passaram pela cabeça.  Já tive algumas boas conversas com ele sobre Direito Canônico e ele é um advogado extremamente competente.
         – O italiano?  Bem lembrado! – falou sorrindo. – Parece que você já pensou em tudo... Mais alguma indicação?
         – Pensei em um grupo pequeno e seleto; irmãos realmente confiáveis e de integridade notoriamente inquestionável.  Eu incluiria nesta lista o irmão capelão Renaud de Provins e os cavaleiros Bertrán de Sartigues e Guillaume de Chambonnet.  Estes dois últimos, além de não terem confessado nada quando o Bispo de Clermont os interrogou, são cavaleiros de Auvergne, minha região natal, e nossas famílias mantêm relações de amizade há muito tempo.
         – Farei como me pede, Pierrefort.  E que Deus esteja conosco!
         – Ele está, meu senhor, e eu também estarei. Fui tido como morto e é melhor que todos pensem que isto realmente aconteceu.  Apenas o senhor e este pequeno grupo que mencionei saberão que ainda vivo.  Em liberdade, poderei ajudá-los.  Debaterei as questões legais com Pierre – me acostumei a chamá-lo pela versão francesa de seu nome – e trarei notícias de fora destas grades para municiá-los com informações atualizadas.  Tenho acesso inclusive a documentos que são restritos a de Nogaret e aos demais juristas de Filipe...
         Ao ouvir estas palavras, de Molay pareceu hesitar.
         – Como?  Como você consegue ter acesso a isso?  E como conseguiu entrar aqui?
         Pelo tom de sua voz, percebi que ele começava a desconfiar de minha lealdade e eu não poderia deixar que isso acontecesse.
         – Foi Deus quem quis que eu estivesse hoje em liberdade, senhor.  Disseram-lhe que morri?  Pois bem, eu realmente morri!  Mas Ele me trouxe de volta do mundo dos mortos!  E me deu poderes para ir e vir e para atravessar paredes!
         A expressão no rosto do Grão-Mestre me dizia que ele não acreditava em mim.
         – Senhor, pela sua Fé, peço que acredite em mim.  Mas, se minha palavra não é o bastante, se, como Tomé, precisa de provas, observe-me!
         Dizendo isso, caminhei em direção às grades, transformei-me em névoa por um instante e atravessei as barras, assumindo no instante seguinte a forma humana do lado de fora da cela.
         Olhei para trás.  Dentro da cela, de joelhos, como se tivesse acabado de presenciar um milagre, o Grão-Mestre rezava fervorosamente.


         Em 26 de novembro de 1309, Jacques de Molay apresentou-se à Comissão Apostólica e declarou estar disposto a defender a Ordem e invalidou seu testemunho anterior.  Dois dias depois, compareceu novamente à Comissão e adotou a postura que iria manter até o final do processo: já que apenas o Papa podia julgá-lo, falaria apenas com o Pontífice.

         As notícias correm e os ânimos mudam.
         Em 3 de fevereiro de 1310, 15 templários comparecem à Comissão para defender o Templo. Quando de Molay é trazido pela terceira vez diante da Comissão Apostólica, em 2 de março de 1310, outros 500 irmãos já se haviam manifestado em defesa da Ordem.  Um mês depois, este número já passava de 600.
         A reação do Templo havia finalmente começado!