sábado, 14 de maio de 2011

Minha história III – De como me tornei um Vampiro – Parte II


         Não vou me alongar demais, pois acho que me perdi nos detalhes em meu último post.  Espero que me perdoem.  Afinal, alguém como eu, nascido em 1276, não pode ser classificado como um “nativo digital”, não é mesmo?
         Mas voltemos à minha história...

         Não foi fácil me acostumar à Paris, quando do meu retorno à França.  Ou a cidade havia mudado muito, ou eu mudara.  E creio que a maior mudança tenha sido mesmo a minha.  A vida no Outremer era completamente diferente da vida burocrática de uma grande cidade, que eu já não mais conseguia suportar.  Apesar disso, empenhava-me por realizar minhas atribuições junto à Ordem da melhor forma possível, auxiliando na administração dos negócios do Templo de Paris e atuando como conselheiro da Ordem para assuntos legais.

         Eu poderia aqui me deter nos muitos fatos que ocorreram neste período, mas prometi que não me estenderia além do necessário.  Pulemos então para os acontecimentos que tiveram lugar em fins de 1307.
        
         Como muitos de vocês devem saber, foi neste ano, na fatídica madrugada de 13 de outubro, que ocorreu a prisão dos templários em território francês, numa operação muito bem engendrada pelo ambicioso Rei Filipe de Valois.  Juntamente com centenas de outros templários, fui preso, acusado de crimes hediondos e torturado.
         Naquela época, eu pensava que era tudo uma questão de tempo e que, mais cedo o mais tarde, a verdade prevaleceria.  Mal sabia eu a extensão da perfídia de Filipe e a abrangência da trama que se armara fora das masmorras em que me encontrava aprisionado.
         Filipe e seu conselheiro, Guillaume de Nogaret, haviam pensado em cada detalhe.  A operação de nossa captura, por exemplo, fora planejada com antecedência: cartas lacradas, acompanhadas de instruções para serem abertas apenas na noite de 12 de outubro, tinham sido enviadas a todos os cantos da França quase um mês antes.  As acusações haviam sido forjadas ainda com mais antecedência, baseadas nos depoimentos de dois homens – Noffo Dei, um florentino que se dizia templário, mas que tivera apenas um envolvimento comercial com a Ordem, e Esquieu de Floryan, um antigo Prior de Montfalcon que trocara falsos testemunhos por favores pessoais.
         Entre meados de outubro e finais de novembro daquele ano, 138 templários foram torturados pelos algozes de Filipe e pelo Inquisidor de Paris, um dominicano chamado Guillaume Imbert e que era confessor de Filipe.  Mas nem todos se entregaram à confissão: 2 cavaleiros morreram naqueles dias em conseqüência dos interrogatórios e outros 3, mesmo padecendo os piores tormentos, recusaram-se a mentir sua culpa.  Gostaria de estar entre eles, em qualquer um destes dois grupos, mas, apesar de minha vergonha em admiti-lo, fui um dos muitos que cederam ao conforto piedoso de uma falsa confissão.
         Atemorizado, humilhado, sentindo-me um traidor, fui atirado à cela de um calabouço fétido, juntamente com um pequeno grupo de irmãos.  Vez por outra, guardas entravam e levavam algum de nós.  Às vezes, este irmão retornava; outras vezes, não.  Com isso, minha cela foi ficando vazia, até restar apenas eu.  “Eu, os ratos e Deus”, eu costumava pensar.
         Uma vez ao dia, um prato de metal com alguma comida era enfiado por baixo da porta.  Era geralmente algo de aparência repugnante e com gosto azedo, e não foram raras as vezes em que as larvas pareciam ter chegado primeiro à minha refeição.  Mas, quando o carcereiro esquecia-se de mim por mais de três dias, o que também não era raro, era com humilhante sensação de agradecimento que eu recebia o alimento que ele me trazia.

         E assim correram meus dias, acorrentado à parede de uma cela sem janelas, sentindo o passar das estações pela temperatura do ar pestilento que impregnava o ambiente.  E as estações passavam rápido.  Lembro de ter sentido muito frio algum tempo depois de ser preso.  Agora, o frio penetrante estava de volta, me fazendo concluir que um novo inverno ocorria lá fora.  Devíamos estar em fins de 1308.
         As ausências do carcereiro passaram a ser a regra.  Nas ocasiões em que ele aparecia, deixava um balde com água e um pedaço de pão, que deveriam durar até sua próxima e incerta visita.
         Meu corpo era só pele e ossos quando os sentidos começaram a trair-me.  Eu mal tinha forças para arrastar-me até a água ou para mastigar o pão empedernido, e já não conseguia mais pensar com clareza.
         Em uma noite especialmente gélida, julguei ouvir sinos tocando, muitos sinos.  Eles me trouxeram de um sono profundo, do qual talvez eu não quisesse voltar, e me fizeram abrir os olhos.
         Minha visão estava turva e tardou a acomodar-se à penumbra da cela, mas, quando o fez, julguei divisar uma figura diante de mim.  Forcei a vista e então a vi com clareza.  Estava parada, altiva, olhando-me com curiosidade. “Então vieste, finalmente!  Irei contigo de bom grado, amiga Morte!”.  Não pronunciei as palavras; apenas as imaginei em minha mente.  E da mesma forma, sem que qualquer som fosse emitido, ela me respondeu: “Não sou a Morte; não para ti.  Olha-me com atenção.  Será possível que não te recordes de mim?”.
         Não sei de onde retirei forças, mas consegui ficar de pé e encará-la.  E só então pude perceber sua assombrosa beleza!  Os cabelos escuros, presos num coque sobre a cabeça elegante; os olhos grandes e amendoados, da cor do mel; a boca perfeita como uma fruta madura...  E então a reconheci!
         – Você?  Como é possível? – balbuciei incrédulo.
         – Sim, meu salvador; eu mesma. – respondeu-me desta vez de forma audível. – Vim para retribuir o que fizeste por mim.
         Desde aquela madrugada, quando a salvei das garras da desonra e da morte na aldeia síria atacada por nós, sua lembrança não me saíra do pensamento.  Mas haviam se passado oito anos!  Eu estaria agora com 32; como poderia ela continuar aparentando a mesma idade, sem qualquer sinal da passagem do tempo?
         A resposta veio novamente como um sussurro dentro de minha cabeça: “Queres saber o que se passou comigo, cavaleiro?”.
         Respondi que sim.
         “Pois contarei.”
         “Depois que os soldados se foram, abandonei meu esconderijo e corri para a rua.  Não havia outros sobreviventes.  Procurei minha mãe e a retirei de um monte de corpos.  Abraçada a ela, chorei até o sol estar alto.  Decidi enterrá-la, e a todos, tantos quanto pudesse, mas, até a noite, havia conseguido sepultar apenas ela e algumas poucas pessoas.  Estava exausta, com as mãos machucadas e o coração despedaçado...
         “Foi quando ele chegou, atraído pelo cheiro de sangue que emanava da aldeia...  Um nosferatu...  Sabes do que estou falando?  Não?  Pois saberás em breve, meu piedoso salvador.”
         Com estas palavras, livrou-se da capa que cobria seu corpo e aproximou-se de mim, nua.
         Eu já a havia imaginado assim por diversas vezes, mas sempre reprimira minha imaginação, impedindo que tais pensamentos impuros me dominassem.  Mas agora, eu estava fraco demais para lutar.
         Contemplei seu corpo perfeito, as curvas harmoniosas de seus quadris, a beleza estonteante de seus seios firmes...

         Ela encostou-se a mim.  Sua pele era fria como uma noite de inverno.  Beijou-me a boca, com delicadeza.
         – Sabes que dia é hoje? – sussurrou ao meu ouvido. – É Natal!  Não ouviste os sinos?  E estou aqui para dar-te um presente.  Um dia, me deste a vida, mas me tiraste tudo o mais pelo que vale viver.  Agora, meu bom cavaleiro, eu te retribuo!

         Seus lábios tocaram meu pescoço.  Uma dor aguda surpreendeu-me e fez meu corpo estremecer.  Senti o frio da morte preenchendo-me lentamente, contrastando com o calor do sangue que brotava da ferida aberta em meu pescoço e que escorria de seus lábios sedentos.
         Eu estava fraco.  Num último esforço, perguntei seu nome.
         – Nadine. – murmurou ela.
         – Nadine... – repeti ainda uma vez antes de desfalecer.

         Na manhã seguinte, meu corpo sem vida foi removido da cela, envolto em uma mortalha barata e atirado num fosso.  Na terceira noite, no entanto, meus olhos tornaram a se abrir.

         Nadine.  O último nome, a última palavra que ouvi e que pronunciei em minha vida mortal.
         Esperança.  É tudo o que tenho; tudo o que me restou...
         Ainda espero encontrá-la um dia.
         E então, finalmente, pedir seu perdão.